Produção cultural, eventos e festivais de música. Planejamento Estratégico e Operacional, Formação política, para sindicatos e ONGs
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
A fumicultura tem futuro no Brasil?
A fumicultura tem futuro no Brasil?
*Albino Gewehr
A produção mundial de tabaco está migrando dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento confirmando a projeção de ampliação da produção no Brasil nas próximas décadas. A redistribuição espacial das fumageiras nos três estados do Sul aponta a acerto dessas projeções. Ao analisar os projetos de expansão de cada empresa do setor, pode-se afirmar que entre 2015 e 2020, o Brasil deve atingir a colheita de 1,5 milhões de toneladas de tabaco por ano, ampliando o número de agricultores envolvidos na produção primária, avançando sobre regiões ainda não “conquistadas” pelo fumo.
As 182 mil famílias fumicultoras do Sul do Brasil têm um antecedente histórico de pluriatividade, diversificação e agroindustrialização de alimentos, mas com o passar dos anos, relegados pela falta de política agrícola, migraram para este sistema integrado. O quadro de desencanto dos agricultores começa a mudar a partir de 1996 com conquista do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) criando um novo patamar de suporte de crédito aos agricultores. Inicialmente tímido, hoje, o Pronaf oferece R$ 13 bilhões/ano. O Programa Mais Alimentos lançado em julho de 2008, possibilita que os agricultores familiares invistam em máquinas agrícolas, equipamentos para agroindustrialização e melhorias nas técnicas de produção, na ordem de até R$ 100 mil por família.
Com isso, o Programa de Diversificação das Áreas Cultivadas com Fumo, desenvolvido pelo Governo Federal é uma conquista das entidades que apoiaram a ratificação pelo Brasil da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco. O programa apóia entidades que atuam em pesquisa, extensão rural e assistência técnicas voltadas a busca de alternativas de desenvolvimento rural sustentável.
O Programa de Diversificação precisa avançar rápido para que as políticas públicas como Pronaf, PAA e Mais Alimentos cheguem aos fumicultores interessados em diversificar suas atividades, principalmente àqueles de renda média e/ou insuficiente com o plantio de fumo. É necessário possibilitar a contratação de técnicos diversificadores para atuar a campo.
A área plantada com fumo reduziu 22% nas duas últimas safras, 75 mil hectares a menos, mas tende a voltar se não chegarmos com alternativas a esses agricultores. Na safra atual 20 mil hectares foram recuperados com plantio de fumo através das estratégias de ampliação das indústrias. Se os agricultores obedecerem cegamente às indústrias, ampliando a área plantada, até aqueles com renda boa terão seus ganhos comprometidos. Precisamos decidir com inteligência, diversificar a renda na propriedade e resistir ao avanço rápido da fumicultura, visto que o mercado futuro desse produto deve refluir. Precisamos também enfrentar de frente temas como trabalho infantil, doença do tabaco verde e domínio de multinacionais sobre o setor.
* Técnico Agrícola, Assessor da Fetraf-Sul
(Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar)
e representante da CUT na Câmara Setorial do Fumo
Adequações no setor fumageiro no Brasil
Adequações no setor fumageiro no Brasil
Nos últimos meses a pergunta mais freqüente que respondo nos diversos ambientes que freqüento pelo Brasil a fora, é se realmente as indústrias de beneficiamento de fumo estão se deslocando para Santa Catarina.
Não , esta afirmativa está errada, pelo fato de não haver previsão de fechamento de unidades no Rio Grande do Sul, e sim a instalação de novas unidades de beneficiamento de tabaco em Santa Catarina e a consequente readequação das atuais unidades instaladas no Vale do Rio Pardo –RS.
As multinacionais, Souza Cruz e Universal Leaf Tabacos do Brasil, já atuam de forma descentralizada, as demais empresas seguirão o mesmo caminho estratégico e logístico. È inconcebível, com o volume de 700 mil toneladas anuais, o transporte terrestre de milhares de cargas de fumo para um único ponto de beneficiamento.
A Souza Cruz tem entorno de 40 mil agricultores integrados e a unidade de Santa Cruz do Sul onde beneficia o fumo oriundo de 17 mil propriedades, o restante é beneficiado nas usinas de Blumenau -SC e Rio Negro no Paraná. Já a Universal Leaf , com 50 mil agricultores integrados, instalou em 2005 uma unidade de beneficiamento em Joinville-SC, onde beneficia os fumos produzidos naquele estado e no Paraná.
A retenção dos créditos de ICMs pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul nos governos de Germano Rigotto e de Yeda Crusius, aceleraram esse processo de adequação das plantas industriais. Some-se a isso a disputa dos estados vizinhos interessados em gerar novos empregos e pela agregação de valor adicionado, proporcionado aos municípios sedes das plantas , pelo beneficiamento do tabaco para exportação.
O Governador Luis Henrique de SC afirma não oferecer nenhum benefício diferente ao setor fumo, condições iguais aos demais setores. E isso já é muito atrativo.
A modernização dos portos catarinenses e paranaeses também pesou e pesa na decisão estratégica das multinacionais.
As demais empresas ( Alliance One, CTA, Premiun, KBH&C e outras...) com aproximadamente 80 mil agricultores integrados, seguem o mesmo caminho e já estão em tratativas com os estados vizinhos, procuram consolidar incentivos municipais e benefícios fiscais junto aos governos estaduais, ao mesmo tempo em que aproveitaram o período eleitoral municipal para pressionar pelo recebimento dos créditos retidos no RS.
Afirmo que, mesmo que os créditos estivessem em dia , a redistribuição das plantas industriais ocorreria pela competitividade no setor
Lembrando ainda, que com a recente valorização do Dólar frente ao Real e ao Euro, a expectativa de arrecadação das empresas com a exportação cresce de R$ 3,52 bilhões para R$ 4,82 bilhões, acréscimo de R$ 1,32 bilhões. Valor este muito superior aos eventuais créditos retidos, que aliás, não podemos esquecer, foram usados como desculpa para pagar menos aos fumicultores nas safras 2005/2006 e 2006/2007.
*Albino Gewehr – Técnico agrícola
• Representante da CUT na Câmara Setorial do Fumo.
• Assessor da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul - FETRAF-SUL
domingo, 26 de outubro de 2008
Contra a criminalização da pobreza, da luta e das organizações dos trabalhadores
Reunidos em Brasília, representantes de sindicatos, centrais sindicais, movimentos populares e estudantis, entidades representativas dos advogados e magistrados, com o objetivo de estudar e debater a crescente onda de criminalização da pobreza, das lutas e das organizações dos trabalhadores de nosso país, decidimos apresentar essa Carta à sociedade brasileira.
São quase diários os massacres de jovens e trabalhadores, negros e pobres em sua imensa maioria, em algumas cidades do país, assassinados pela polícia do Estado em operações voltadas pretensamente para o combate ao crime organizado.
O ajuizamento de ações de Interdito Proibitório, instrumento utilizado generalizadamente junto à Justiça Civil e à Justiça do Trabalho, tem sido o principal meio através do qual o empresariado tenta impedir os trabalhadores de exercer o direito à manifestação e à greve, garantias constitucionais inquestionáveis.
Alem dos interditos, a intervenção – via de regra truculenta – da polícia para impedir o trabalho do sindicato na construção e condução das mobilizações dos trabalhadores, a perseguição e demissão de dirigentes e ativistas sindicais completam um quadro que parece retroceder à realidade do início do século passado e dos períodos ditatoriais, quando a luta dos trabalhadores era considerada "caso de polícia".
Os interditos proibitórios e a ação da polícia do Estado são utilizados, de forma ainda mais violenta e abusiva, contra movimentos populares que buscam organizar o povo pobre para lutar por uma vida minimamente digna. Existem hoje em nosso país cidadãos proibidos pela Justiça de "passar em frente a uma prefeitura", e são inúmeros os casos em que a violência policial foi utilizada de forma completamente abusiva, em defesa da propriedade e não da lei.
Os recorrentes assassinatos de trabalhadores no campo e na cidade, de líderes religiosos, populares e indígenas, acompanhados quase sempre da impunidade, o que incentiva a mais crimes, é uma triste e dura realidade em nosso país. A presteza, a rapidez e a força que os órgãos policiais e judiciais não têm para punir os assassinos sobram na hora de reprimir os movimentos sociais e sindicatos que lutam pela reforma agrária e urbana.
Sequer as mobilizações estudantis escapam dessa realidade. Neste último período a luta dos estudantes e demais setores da comunidade universitária em defesa da educação pública, de qualidade e para todos, tem sido alvo de um processo repressivo cada vez mais intenso. Muitas entidades estudantis estão ameaçadas por multas milionárias originadas nos mesmos interditos proibitórios. Há dezenas de estudantes processados neste momento, pelo menos, em Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Santa Catarina e Brasília.
Para agravar ainda mais este quadro começamos a assistir nos últimos meses a uma ação cada vez mais ousada do governo federal, através do Ministério do Trabalho, no sentido de intervir nas organizações sindicais, cassando ilegalmente registros sindicais, concedendo outros sem a observância dos preceitos legais, ferindo frontalmente o que está prescrito na Constituição Federal.
Ao contrário do que pode parecer, estes problemas não dizem respeito apenas às entidades e pessoas diretamente envolvidas. A ocorrência generalizada destes fenômenos indica claramente que são resultado de uma política, de uma ação consciente e organizada envolvendo empresários, proprietários rurais e governos, para limitar ou diretamente impedir o acesso dos trabalhadores ao exercício de garantias constitucionais, de lutar em defesa de seus direitos sociais e por uma vida melhor.
Não se pode dizer que há democracia e vigência do Estado de Direito em um país em que os trabalhadores que se organizam para a luta e a pressão social sejam tratados como criminosos; em que a proteção ao Capital e à ganância pelo lucro resumam as atribuições das instituições do Estado. Mais grave ainda tende a ficar a situação se considerarmos que a crise econômica que ora se apresenta, como tem sido a regra, pode aumentar ainda mais a degradação das condições de vida e o ataque aos direitos dos trabalhadores.
Afirmamos categoricamente: a criminalização da pobreza, da luta e das organizações dos trabalhadores são inaceitáveis! Esta situação precisa mudar!
É necessário que se estabeleça o respeito aos direitos dos trabalhadores e, particularmente neste momento, o direito à livre organização sindical e popular, o pleno direito à greve e à mobilização social como meios legítimos de defesa das reivindicações sociais e da busca por melhorias na condição de vida.
Nesse sentido, os representantes das entidades signatárias dessa Carta, adotam as seguintes iniciativas:
–Constituir um "Fórum Nacional contra a criminalização da pobreza, da luta e das organizações dos trabalhadores" aberto à incorporação de novas entidades, sob a coordenação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que se reunirá regularmente para receber denúncias relacionadas ao tema, examinar situações e propor medidas de combate à criminalização dos movimentos e lutas sociais;
–Desencadear uma campanha buscando atingir este objetivo: iremos cobrar medidas concretas da Presidência da República, dos poderes Judiciário e Legislativo e apelaremos às cortes internacionais; exigiremos a responsabilizaçã o das empresas que incorrerem em práticas anti-sindicais e de criminalização da atividade dos sindicatos de trabalhadores;
–Denunciaremos a toda a sociedade esta situação ao mesmo tempo em que buscaremos mobilizá-la para pressionar os poderes constituídos pelas mudanças que aqui preconizamos, pela correção das injustiças e reintegração ao trabalho de trabalhadores e dirigentes atacados;
–Como parte das atividades do "Fórum Nacional", o Seminário indica que sejam analisadas as condições e causas da grande quantidade de trabalhadores que morrem exercendo o seu trabalho no campo e nas fábricas;
–Constitui um princípio de ação do "Fórum Nacional" que toda agressão ao direito de manifestação e exercício das atividades sindicais, dos movimentos populares e estudantis, em qualquer entidade na qual o trabalhador, dirigente ou ativista atue, será entendida como uma agressão ao coletivo de entidades signatárias dessa "Carta";
–Convocar amplamente uma atividade a ser realizada durante o "Fórum Social Mundial" em janeiro de 2009, em Belém (PA), que debata a criminalização dos movimentos sociais.
A essa luta conclamamos todos os sindicatos, centrais sindicais, movimentos populares, organizações e entidades democráticas de nosso país. Juntos, mobilizados, faremos valer os direitos daqueles que constroem, com seu suor e trabalho, todas as riquezas deste país.
Brasília, Sede Nacional do Conselho Federal da OAB, 21 e 22 de outubro de 2008.
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
ABRAT - Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas
AJUFE - Associação dos Juízes Federais do Brasil
Anamatra - Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
Conlutas - Coordenação Nacional de Lutas
CUT - Central Única dos Trabalhadores
CTB - Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil
ANDES/SN - Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2008
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
IDENTIDADES RASURADAS
Sobre o Mateus
Foi meu colega de história na Unisc onde foi coordenador do diretório acadêmico Rosa Luxemburgo. Inclusive foi ele quem preparou a primeira reunião quando entramos no curso para entrarmos para a direção do Diretório acadêmico. Desde então começamos uma caminhada que levou esse grupo de estudantes de história, um dos menores cursos da universidade, a direção do Diretório Central dos Estudantes da universidade. Durante toda a graduação mantivemos uma atividade muito intensa nas discussões sobre as questões internas do curso de história, mas não só isso, fomos além, discutimos as questões da universidade: mensalidades, representação nos fóruns e instâncias da universidade; A discussão sobre o papel do educador e do historiador, questões de gênero, raça/etnia, reforma agrária; enfim foram 4 anos de intensas atividades não só nas salas de aula, mas nos corredores da universidade e nas ruas da cidade.
Por isso é com enorme prazer que apresento aos amigos(as), camaradas e conhecidos essa que é sem duvida nenhuma uma obra que vem resignificar a historiografia regional trazendo para a luz um tema por demais escamoteado na construção do discurso identitario da região.
Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar de que forma é subjetivado o discurso identitário germânico pelos sujeitos afro-descendentes residentes em Santa Cruz do Sul, cidade localizada na região central do Rio Grande do Sul e caracterizada pela “identidade” germânica. A partir da análise da historiografia regional, da imprensa escrita e de entrevistas semi-estruturadas, problematiza-se as implicações desta discursividade na construção dos espaços sociais de existência para a comunidade afro-descendente neste município. A investigação tem como espaço temporal de 1970 a 2000. Esta demarcação justifica-se por ser o período correspondente a internacionalização econômica do setor agro-fumageiro, assim como de revigoramento do discurso étnico, passado os reflexos da II Guerra Mundial para a interdição das manifestações étnico-raciais. Para tanto, a análise se desdobra em três capítulos. No primeiro, apresentamos um panorama histórico de Santa Cruz do Sul dando ênfase para a diversidade cultural. Neste mesmo capítulo, problematizamos a forma como a historiografia regional legitima os discursos identitários orquestrando as possibilidades de pertencimento dos diversos grupos sociais e étnicos que formam a comunidade. No segundo, analisamos o papel da imprensa escrita, nomeadamente o jornal de maior circulação da região, a Gazeta do Sul, na formação das estereotipias sociais e étnicas e na propagação e manutenção do discurso comunitarista. No terceiro, através da história oral de entrevistas semi-estruturadas aplicadas junto aos sujeitos afro-descendentes, procuramos analisar o impacto da narrativa identitária regional em suas trajetórias sociais e suas recriações culturais, bem como nas estratégias de organização e mobilização na busca de afirmação identitária. As considerações finais da pesquisa apontam que o discurso homogeneizador germânico da identidade cultural santa-cruzense opera diretamente no processo de subjetivação e representação da comunidade afro-descendente em Santa Cruz do Sul.
terça-feira, 21 de outubro de 2008
Feminicídio ao vivo – o que nos clama Eloá
Maria Dolores de Brito Mota - Socióloga, professora da Universidade Federal dp Ceará
Maria da Penha Maia Fernandes – Inspiradora da lei Maria da penha 11340 e Coordenadora de Honra da Coordenadoria da Mulher da Prefeitura Municipal de Fortaleza.
Tudo o que o Brasil acompanhou com pesar no drama de Eloá, em suas cem horas de suplício em cadeia nacional, não pode ser visto apenas como resultado de um ato desesperado de um rapaz desequilibrado por causa de uma intensa ou incontrolada paixão. É uma expressão perversa de um tipo de dominação masculina ainda fortemente cravada na cultura brasileira. No Brasil, foram os movimentos feministas que iniciaram nos anos de 1970, as denúncias, mobilização e enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres que se materializava nos crimes cometidos por homens contra suas parceiras amorosas. Naquele período ainda estava em vigor o instituto da defesa da honra, e desenvolveram- se ações de movimentos feministas e democráticas pela punição aos assassinos de mulheres. A alegação da defesa da honra era então justificativa para muitos crimes contra mulheres, mas no contexto de reorganização social para a conquista da democracia no país e do surgimento de movimentos feministas, este tema vai emergir como questão pública, política, a ser enfrentada pela sociedade por ferir a cidadania e os direitos humanos das mulheres. O assassinato de Ângela Diniz em dezembro de 1976, por seu namorado Doca Street, foi o acontecimento desencadeador de uma reação generalizada contra a absolvição do criminoso em primeira instância, sob alegação de que o crime foi uma reação pela defesa da "honra". Na verdade, as circunstâncias mostravam um crime bárbaro motivado pela determinação da vítima em acabar com o relacionamento amoroso e a inconformidade do assassino com este fim. Essa decisão da justiça revoltou parcelas significativas da sociedade cuja pressão levou a um novo julgamento em 1979 que condenou o assassino. Outro crime emblemático foi o assassinato de Eliane de Grammont pelo seu ex-marido Lindomar Castilho em março de 1981. Crimes que motivaram a campanha "quem ama não mata".
Agora, após três décadas, o Brasil assistiu ao vivo, testemunhando, o assassinato de uma adolescente de 15 anos por um ex-namorado inconformado com o fim do relacionamento. Um relacionamento que ele mesmo tomou a iniciativa de acabar por ciúmes, e que Eloá não quis reatar. O assassino, durante 100 horas manteve Eloá e uma amiga em cárcere privado, bateu na vitima, acusou, expôs, coagiu e por fim martirizou o seu corpo com um tiro na virilha, local de representação da identidade sexual, e na cabeça, local de representação da identidade individual. Um crime onde não apenas a vida de um corpo foi assassinada, mas o significado que carrega – o feminino. Um crime do patriarcado que se sustenta no controle do corpo, da vontade e da capacidade punitiva sobre as mulheres pelos homens. O feminicídio é um crime de ódio, realizado sempre com crueldade, como o "extremo de um continuum de terror anti-feminino" , incluindo várias formas de violência como sofreu Eloá, xingamentos, desconfiança, acusações, agressões físicas, até alcançar o nível da morte pública. O que o seu assassino quis mostrar a todas/os nós? Que como homem tinha o controle do corpo de Eloá e que como homem lhe era superior? Ao perceber Eloá como sujeito autônomo, sentiu-se traído, no que atribuía a ela como mulher (a submissão ao seu desejo), e no que atribuía a si como homem (o poder sobre ela – base de sua virilidade). Assim o feminicídio é um crime de poder, é um crime político. Juridicamente é um crime hediondo, triplamente qualificado: motivo fútil, sem condições de defesa da vítima, premeditado.
Se antes esses crimes aconteciam nas alcovas, nos silêncios das madrugadas, estão agora acontecendo em espaços públicos, shoppings, estabelecimentos comerciais, e agora na mídia. Para Laura Segato[i] é necessário retirar os crimes contra mulheres da classificação de homicídios, nomeando-os de feminicídio e demarcar frente aos meios de comunicação esse universo dos crimes do patriarcado. Esse é o caminho para os estudos e as ações de denúncia e de enfrentamento para as formas de violência de gênero contra as mulheres.
Muita coisa já se avançou no Brasil na direção da garantia dos direitos humanos das mulheres e da equidade de gênero, como a criação das Delegacias de Apoio às Mulheres – DEAMs, que hoje somam 339 no país, o surgimento de 71 casas abrigo, além de inúmeros núcleos e centros de apoio que prestam atendimento e orientação às mulheres vítimas, realizando trabalho de denúncia e conscientização social para o combate e prevenção dessa violência, além de um trabalho de apoio psicológico e resgate pessoal das vítimas. Também ocorreram mudanças no Código Penal como a retirada do termo "mulher honesta" e a adoção da pena de prisão para agressores de mulheres, em substituição às cestas básicas. A criação da Lei 11.340, a Lei Maria da Penha, para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres.
Mas, ainda assim as violências e o feminicídio continuam a acontecer. Vejamos o exemplo do Estado do Ceará: em 2007, 116 mulheres foram vítimas de assassinato no Ceará; em 2006, 135 casos foram registrados; em 2005, 118 mortes e em 2004, mais 105 casos[ii]. As mulheres estão num caminho de construção de direitos e de autonomia, mas a instituição do patriarcado continua a persistir como forma de estruturação de sujeitos. É preciso que toda a sociedade se mobilize para desmontar os valores e as práticas que sustentam essa dominação masculina, transformando mentalidades, desmontando as estruturas profundas que persistem no imaginário social apesar das mudanças que já praticamos na realidade cotidiana. O comandante da ação policial de resgate de Eloá declarou que não atirou no agressor por se tratar de "um jovem em crise amorosa", num reconhecimento ao seu sofrer. E o sofrer de Eloá? Por que não foi compreendida empaticamente a sua angústia e sua vontade (e direito) de ser livremente feliz?
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[i] SEGATO, Rita Laura. Que és um feminicídio. Notas para um debate emergente. Serie Antropologia, N. 401. Brasília: UNB, 2006.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
A bancária algemada
Alcy Cheuiche*
O Sindicato dos Bancários de Porto Alegre está completando 75 anos. Três gerações de luta, desde sua fundação em 1933. Nascido sob a égide dos revolucionários de 30, tem uma bela história para contar. Alguns dos seus ex-presidentes, como Olívio Dutra e José Fortunatti, depois de considerados subversivos durante a ditadura, fizeram carreira na política partidária, com muito destaque, para a honra dos bancários. Mas não esquecem das coações que sofreram, das prisões arbitrárias, das algemas nos pulsos.
Coisas do tempo da ditadura, dirão alguns. Pois não é bem assim. Nossa democracia, como no governo Geisel, continua relativa. E as algemas foram usadas, ainda a semana passada, para humilhar uma líder bancária gaúcha.
Não vou dizer seu nome porque não lhe pedi autorização. Mas o fato pode ser comprovado junto ao Sindbancários, ali na Rua da Ladeira, na hora que o leitor desejar. Também a Brigada (que pena, uma corporação gloriosa) registrou a lamentável ocorrência, uma vez que a bancária foi levada à força para um posto policial.
Segundo a versão da vítima, os fatos foram os seguintes. A Diretora do Sindbancários foi chamada à agência do Banco Real, na Borges de Medeiros, porque uma advogada do banco queria impedir a greve por conta de uma liminar da 21ª Vara do Trabalho. A sindicalista mostrou outra liminar da 5ª Vara do Trabalho, garantindo o direito de greve. Discutiram, a advogada exigindo que os grevistas saíssem da frente da agência e a diretora alegando que estavam exercendo um direito legítimo, ordeiro e pacífico, garantido pela Constituição Federal.
Foi quando chegaram quatro brigadianos, três homens e uma mulher. Foi dada voz de prisão para a Diretora do Sindbancários e, pasmem os leitores, a brigadiana sacou de suas algemas e fechou-as nos pulsos da bancária. Uma mulher desarmada, cuja periculosidade residia apenas em exercer o direito de greve, jamais deveria ter sido presa, muito menos, algemada.
E não ficou por aí. A bancária foi conduzida a pé, como um assaltante de rua, pela Borges de Medeiros, até o Posto da Brigada no Largo Glênio Peres. No local estavam alguns verdadeiros delinqüentes, a maioria sem algemas.
A Diretora sindical ficou presa por duas horas e foi lavrado um termo circunstanciado em que figurou como ré e o banco como vítima.
Quando da prisão do banqueiro Daniel Dantas, muitos juristas, a começar pelo Presidente do Supremo Tribunal, Gilmar Mendes, condenaram o uso desnecessário de algemas. E agora? São ofensivas para a dignidade do banqueiro e justificadas para a bancária?
Pobre democracia brasileira. Acredite quem quiser.
*Escritor
Justiça do Trabalho manda polícia afastar-se de bancos em Porto Velho
Por determinação do juiz da 3ª Vara do Trabalho, Afrânio Viana Gonçalves, o Estado de Rondônia está obrigado a afastar todo seu aparato policial das proximidades de agências bancárias em Porto Velho.
A decisão atende em parte a pedido do Sindicato dos empregados em estabelecimentos bancários do Estado de Rondônia (Seeb RO) em pedido de providências contra o ABN Amro Real, Bradesco, Banco do Brasil, Banco da Amazônia, Itaú, Santander, Caixa Econômica Federal, HSBC e Unibanco.
Afrânio avocou para si a competência para julgamento de questões envolvendo a greve dos bancários na Capital.
O juiz negou determinação diretamente contra as instituições bancárias, alegando que não houve comprovação de que seus gerentes estivessem incorrendo contra o direito de greve, mas, explica que tem poder para determinar o afastamento da Polícia, que estando próxima as agências, pode ser interpretado como coação.
Ontem, 15/10, foi derrubada a última liminar de Interdito proibitorio que o Bradesco havia conseguido na justiça cível. Em P. Velho, todas as liminares de interditos proibitórios contra os bancários foram caçadas.
A diretoria do Sindicato, orienta a todos os bancários que mantenham-se mobilizados nesta quinta, para forçar os banqueiros a apresentar proposta que atendam nossas reivindicações nesta quinta feira, a partir das 10 horas, quando o Comando Nacional e a Fenaban se reunem para negociar.
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior
ESPECIAL - FRANÇOIS CHESNAIS
"Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler uma passagem de O Capital: o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção. O meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente". Leia a íntegra da palestra do economista francês François Chesnais feita em setembro, em Buenos Aires.
François Chesnais* - Esquerda.Net
Nesta apresentação feita em 18 de Setembro em Buenos Aires, o economista marxista francês François Chesnais expõe a forma como o capitalismo, na sua longa fase de expansão, tentou superar os seus limites imanentes. E como todas essas tentativas contribuíram para criar agora uma crise muito maior. Comparável à de 1929, mas que ocorre num contexto totalmente novo.
A tese que vou apresentar defende que no ano passado produziu-se uma verdadeira ruptura, que deixa para trás uma longa fase de expansão da economia capitalista mundial; e que essa ruptura marca o início de um processo de crise com características que são comparáveis à crise de 1929, ainda que venha a desenvolver-se num contexto muito diferente.
A primeira coisa que é preciso recordar é que a crise de 1929 se desenvolveu como um processo: um processo que começou em 1929, mas cujo ponto culminante se deu bastante depois, em 1933, e que logo abriu caminho a uma longa fase de recessão. Digo isto para sublinhar que, na minha opinião, estamos a viver as primeiras etapas, mas realmente as primeiras, primeiríssimas etapas de um processo dessa amplitude e dessa temporalidade. E que o que nestes dias está acontecendo e tem como cenário os mercados financeiros de Nova York, de Londres e de outros grandes centros bolsistas, é somente um aspecto - e talvez não seja o aspecto mais importante - do que se deve interpretar como um processo histórico.
Estamos diante de um desses momentos em que a crise vem exprimir os limites históricos do sistema capitalista. Não se trata de alguma versão da teoria da "crise final" do capitalismo, ou algo do estilo. Do que sim se trata, na minha opinião, é de entender que estamos confrontados com uma situação em que se exprimem estes limites históricos da produção capitalista. Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler-vos uma passagem de O Capital:
"O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção; o fato de que aqui a produção é só produção para o capital e, inversamente, não são os meios de produção simples meios para ampliar cada vez mais a estrutura do processo de vida da sociedade dos produtores. Daí que os limites dentro dos quais tem de mover-se a conservação e a valorização do valor-capital, a qual descansa na expropriação e na depauperção das grandes massas de produtores, choquem constantemente com os métodos de produção que o capital se vê obrigado a empregar para conseguir os seus fins e que tendem para o aumento ilimitado da produção, para a produção pela própria produção, para o desenvolvimento incondicional das forças produtivas do trabalho. O meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente. Por conseguinte, se o regime capitalista de produção constitui um meio histórico para desenvolver a capacidade produtiva material e criar o mercado mundial correspondente, envolve ao mesmo tempo uma contradição constante entre esta missão histórica e as condições sociais de produção próprias deste regime. (1)
Bom, certamente que há algumas palavras que hoje já não utilizamos, como "missão histórica"... Mas creio que o que vamos ver nos próximos anos vai dar-se precisamente na base de já ter sido criado em toda a sua plenitude esse mercado mundial intuído por Marx. Quer dizer, temos um mercado e uma situação mundial diferentes da de 1929, porque nessa altura países como a China e a Índia eram ainda semi-coloniais, enquanto que agora já não têm esse caráter; são grandes países que, mais além de terem um caráter combinado que requer uma análise cuidadosa, são agora participantes de pleno direito dentro de uma economia mundial única, uma economia mundial unificada num grau desconhecido até esta etapa da história. A citação pode ajudar-nos a entender o momento atual, e a crise que se iniciou precisamente neste marco de um só mundo.
Um novo tipo de crise
Na minha opinião, nesta nova etapa, a crise vai desenvolver-se de tal modo que as primeiras e realmente brutais manifestações da crise climática mundial vão combinar-se com a crise do capital enquanto tal. Entramos numa fase em que se coloca realmente uma crise da humanidade, dentro de complexas relações nas quais se incluem também os acontecimentos bélicos, mas o mais importante é que, mesmo excluindo a explosão de uma guerra de grande amplitude que, no presente momento, só podia ser uma guerra atómica, estamos confrontados com um novo tipo de crise, com uma combinação desta crise econômica, que começou, com uma situação na qual a natureza, tratada sem a menor contemplação e atacada pelo homem no marco do capitalismo, reage agora de forma brutal. Isto é uma coisa quase excluída das nossas discussões, mas que vai impor-se como um fato central.
Por exemplo, muito recentemente, lendo o trabalho de um sociólogo francês, fiquei a saber que os glaciares andinos dos quais flui a água com que se abastecem La Paz e El Alto estão esgotados em mais de 80%, e estima-se que dentro de 15 anos La Paz e El Alto não vão ter água... e, no entanto, isto é algo que nunca foi tratado, nunca se discutiu um fato de tamanha magnitude que pode fazer com que a luta de classes na Bolívia, tal como a conhecemos, mude substancialmente - por exemplo fazendo com que a tal controversa mudança da capital para Sucre se imponha como uma coisa "natural", porque acabou a água em La Paz.
Estamos entrando num período desse tipo e o problema é que quase não se fala disso, enquanto que nos ambientes revolucionários continuam a discutir-se coisas que neste momento são minúcias, questões completamente mesquinhas em comparação com os desafios que temos pela frente.
Limites imanentes do capitalismo
Para continuar com a questão dos limites do capitalismo, quero chamar a atenção para uma citação de Marx, imediatamente anterior à já citada: "A produção capitalista aspira constantemente a superar estes limites imanentes a ela, mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantar diante dela estes mesmo limites, e ainda com mais força". (2) Esta indicação introduz-nos a análise e a discussão dos meios a que se recorreu, durante os últimos 30 anos, para superar os limites imanentes do capital.
Esses meios foram, em primeiro lugar, todo o processo de liberalização das finanças, do comércio e do investimento, todo o processo de destruição das relações políticas surgidas na raíz da crise de 29 e dos anos 30, depois da Segunda Guerra Mundial e das guerras de libertação nacional... Todas essas relações, que exprimiam o domínio do capital mas representavam ao mesmo tempo formas de controle parcial do mesmo capital, foram destroçadas e, por algum tempo, pareceu ao capital que com isto ficavam superados os limites postos à sua atuação.
A segunda forma que se escolheu para superar esses limites imanentes do capital foi recorrer, numa escala sem precedentes, à criação de capital fictício e de meios de crédito para ampliar uma procura insuficiente no centro do sistema.
E a terceira forma, a mais importante historicamente para o capital, foi a reincorporação, enquanto elementos plenos do sistema capitalista mundial, da União Soviética e seus "satélites", e da China.
Só no marco das resultantes destes três processos é possível captar a amplitude e a novidade da crise que se inicia.
Liberalização, mercado mundial, competição... Comecemos por nos interrogar sobre o que significou a liberalização e a desregulação levadas a cabo à escala mundial, com a incorporação do antigo "campo" soviético e a incorporação e a modificação das relações de produção na China... O processo de liberalização e desregulação significou o desmantelamento dos poucos elementos reguladores que se tinham construído no marco internacional ao sair da Segunda Guerra Mundial, para entrar num capitalismo totalmente desregulamentado. E não só desregulamentado, como também um capitalismo que criou realmente o mercado mundial no pleno sentido do termo, convertendo em realidade o que era em Marx uma intuição ou antecipação. Pode ser útil precisar o conceito de mercado mundial e ir talvez mais além da palavra mercado.
Trata-se da criação de um espaço livre de restrições para as operações do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espaço como base e processo de centralização de lucros à escala verdadeiramente internacional. Esse espaço aberto, não homogêneo mas com uma redução drástica de todos os obstáculos à mobilidade do capital, essa possibilidade para o capital de organizar à escala universal o ciclo de valorização, está acompanhado de uma situação que permite pôr em competição entre si os trabalhadores de todos os países. Quer dizer, sustenta-se no fato de o exército industrial de reserva ser realmente mundial e de ser o capital como um todo que rege os fluxos de integração ou de repulsão, nas formas estudadas por Marx.
Este é então o marco geral de um processo de "produção para a produção" em condições em que a possibilidade de a humanidade e as massas do mundo acederem a essa produção é totalmente limitada... e, portanto, torna-se cada vez mais difícil o encerramento com êxito do ciclo de valorização do capital, para o capital no seu conjunto, e para cada capital em particular. E por isso se ampliam e se fazem mais determinantes no mercado mundial "as leis cegas da competição". Os bancos centrais e os governos podem proclamar que vão pôr-se de acordo entre si e colaborar para impedir a crise, mas não creio que se possa introduzir a cooperação no espaço mundial convertido em cenário de uma tremenda competição entre capitais.
E agora, a competição entre capitais vai muito mais além das relações entre os capitais das partes mais antigas e mais desenvolvidas do sistema mundial, com os sectores menos desenvolvidos do ponto de vista capitalista. Porque sob formas particulares e inclusive muito parasitárias, no marco mundial deram-se processos de centralização do capital por fora do marco tradicional dos centros imperialistas: em relação com eles, mas em condições que também introduzem algo totalmente novo no marco mundial.
Durante os últimos 15 anos, e em particular durante a última etapa, desenvolveram-se, em determinados pontos do sistema, grupos industriais capazes de integrar-se como sócios de pleno direito nos oligopólios mundiais. Tanto na Índia como na China constituíram-se verdadeiros e fortes grupos econômicos capitalistas. E, no plano financeiro, como expressão do rentismo e do parasitismo puro, os chamados Fundos Soberanos converteram-se em importantes pontos de centralização do capital sob a forma de dinheiro, que não são meros satélites dos Estados Unidos, têm estratégias e dinâmicas próprias e modificam de muitas maneiras as relações geopolíticas dos pontos-chave em que a vida do capital se faz e fará.
Por isso, outro elemento a ter em conta é que esta crise tem como outra de suas dimensões a de marcar o fim da etapa em que os Estados Unidos podiam atuar como potência mundial sem comparação... Na minha opinião, saímos do momento que analisava Mészáros no seu livro de 2001, e os Estados Unidos vão ser submetidos a uma prova: num prazo muito curto, todas as suas relações mundiais modificaram-se e terão, no melhor dos casos, de renegociar e reordenar todas as suas relações com base no facto de que têm de partilhar o poder. E isto, evidentemente, é algo que nunca aconteceu de forma pacífica na história do capital...
Então, primeiro elemento: um dos métodos escolhidos pelo capital para superar os seus limites transformou-se em fonte de novas tensões, conflitos e contradições, indicando que uma nova etapa histórica vai abrir caminho através desta crise.
Criação descontrolada de capital fictício
O segundo meio utilizado para superar os limites do capital das economias centrais foi que todas elas recorreram à criação de formas totalmente artificiais de ampliação da procura efectiva, as quais, somando-se a outras formas de criação de capital fictício, geraram as condições para a crise financeira que se desenvolve hoje. No artigo que os companheiros de Herramienta tiveram a gentileza de traduzir para o espanhol e publicar, abordei com alguma profundidade esta questão do capital fictício e as novas formas que se deram dentro do próprio processo de acumulação do capital fictício.
Para Marx, o capital fictício é a acumulação de títulos que são "sombra de investimentos" já feitos mas que, como títulos de bônus e de ações, aparecem com o aspecto de capital aos seus detentores. Não o são para o sistema como um todo, para o processo de acumulação, mas são-no sim para os seus detentores e, em condições normais de fechamento de processos de valorização do capital, rendem aos seus detentores dividendos e juros. Mas o seu caráter fictício revela-se em situações de crise. Quando ocorrem crises de sobreprodução, falência de empresas, etc., descobre-se que esse capital não existia...
Por isso também pode ler-se às vezes nos jornais que tal ou qual quantidade de capital "desapareceu" nalgum tropeço bolsista: essas quantias nunca tinham existido como capital propriamente dito, apesar de, para os detentores dessas ações, representarem títulos que davam direito a dividendos e juros, a receber lucros...
Evidentemente, um dos grandes problemas de hoje é que, em muitíssimos países, os sistemas de aposentadoria estão baseados em capital fictício, com pretensões de participação nos resultados de uma produção capitalista que pode desaparecer em momentos de crise. Toda a etapa de liberalização e de globalização financeira dos anos 80 e 90 esteve baseada em acumulação de capital fictício, sobretudo em mãos de fundos de investimento, fundos de pensões, fundos financeiros... E a grande novidade desde finais ou meados dos anos 90 e ao largo dos anos 2000 foi, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha em particular, o impulso extraordinário que se deu à criação de capital fictício na forma de crédito.
De crédito a empresas, mas também e sobretudo de créditos às famílias, crédito ao consumo e sobretudo créditos hipotecários. E isso fez dar um salto na massa de capital fictício criado, dando origem a formas ainda mais agudas de vulnerabilidade e de fragilidade, inclusive diante de choques menores, inclusive diante de episódios absolutamente previsíveis. Por exemplo, com base em tudo estudado anteriormente, sabia-se que um boom imobiliário acaba; que inexoravelmente chega um momento em que, por processos muito bem estudados, termina; e, se pode até ser relativamente compreensível que no mercado de ações existisse a ilusão de que não havia limites para a alta no preço das acções, com base em toda a história anterior sabia-se que que isso não podia ocorrer no setor imobiliário: quando se trata de edifícios e de casas é inevitável que chegue o momento em que o boom acaba.
Mas colocaram-se em tal situação de dependência, que esse acontecimento completamente normal e previsível transformou-se numa crise tremenda. Porque a tudo o que já disse, juntou-se o fato de que durante os dois últimos anos os empréstimos eram feitos a famílias que não tinham a menor possibilidade de pagar. Além disso, tudo isso se combinou com as novas "técnicas" financeiras, permitindo-se assim que os bancos vendessem bônus em condições tais que ninguém podia saber exatamente o que estava a comprar... até a explosão dos subprime em 2007.
Agora estão desmontando este processo. Mas dentro dessa desmontagem, há processos de concentração do capital financeiro. Quando o Bank Of America compra o Merrill Lynch, estamos diante de um processo de concentração clássico. E vemos além disso estes processos de estatização das dívidas, que implicam na criação imediata de mais capital fictício. O Federal Reserve dos Estados Unidos cria mais capital fictício para manter a ilusão de um valor do capital que está à beira de desmoronar, com a perspectiva de ter, em algum momento dado, a possibilidade de aumentar fortemente a pressão fiscal, mas na realidade não pode fazê-lo porque isso significaria o congelamento do mercado interno e a aceleração da crise enquanto crise real.
Assistimos, pois, a uma fuga em frente que não resolve nada. Dentro desse processo existe também o avanço dos Fundos Soberanos, que procuram modificar a repartição intercapitalista dos fluxos financeiros a favor dos sectores rentistas que acumularam estes fundos. E isto é um fator de perturbação ainda maior no processo.
Quero recordar, para terminar este ponto, que esse déficit comercial de cinco pontos do PIB é o que confere aos Estados Unidos a particularidade desse lugar-chave para a concretização do ciclo do capital no momento da realização da mais-valia, para o processo capitalista no seu conjunto.
Confrontados agora com uma quase inevitável retração econômica, coloca-se como a grande interrogação se, num curto prazo, a procura interna chinesa poderá passar a ser o lugar que garanta esse momento de realização da mais-valia que se dava nos Estados Unidos. A amplitude da intervenção do Tesouro é muito forte e conseguiu que a contração da atividade nos EUA e a queda das importações tenha sido até agora muito limitada. O problema é saber quanto tempo se poderá ter como único método de política econômica criar mais e mais liquidez... Será possível que não haja limites à criação de capital fictício sob a forma de liquidez para manter o valor do capital fictício já existente? Parece-me uma hipótese demasiado otimista, e entre os próprios economistas norte-americanos, muitos duvidam.
Super-acumulação na China?
Para terminar, chegamos à terceira maneira pela qual o capital superou os seus limites imanentes, que é definitivamente a mais importante de todas e levanta as interrogações mais interessantes. Refiro-me à extensão, em particular para a China, de todo o sistema de relações sociais de produção do capitalismo. Algo que Marx mencionou nalgum momento como possibilidade, mas que só se fez realidade durante os últimos anos. E realizou-se em condições que multiplicam os fatores de crise.
A acumulação do capital na China fez-se com base em processos internos, mas também com base em algo que está perfeitamente documentado, mas pouco comentado: a transferência de uma parte importantíssima do Setor II da economia, o setor da produção de meios de consumo, dos Estados Unidos para a China. E isto tem muito a ver com o grosso dos déficits norte-americanos (o déficit comercial e o fiscal), que só poderiam reverter-se por meio de uma "reindustrialização" dos Estados Unidos.
Isto significa que se estabeleceram novas relações entre os Estados Unidos e a China. Já não são as relações de uma potência imperialista com um espaço semicolonial. Os Estados Unidos criaram relações de um novo tipo, que agora têm dificuldades de reconhecer e de assumir. Com base no superávit comercial, a China acumula milhões e milhões de dólares, que logo empresta aos Estados Unidos. Temos uma ilustração das consequências que isto traz com a nacionalização dessas duas entidades chamadas Fannie Mae e Freddy Mac: ao que parece, a banca da China tinha 15% dos fundos dessas duas entidades e comunicou ao governo americano que não aceitaria a sua desvalorização. São relações internacionais de tipo completamente novo.
Mas que ocorre no seio da própria China? É a questão mais decisiva para a próxima etapa da crise. Na China deu-se internamente um processo de competição entre capitais, que se combinou com processos de competição entre sectores do aparelho político chinês, e de competição para atrair empresas estrangeiras; tudo isso resultou num processo de criação de imensas capacidades de produção, além de violentar a natureza numa escala enorme: na China concentra-se uma super-acumulação de capital que num momento dado se tornará insustentável.
Na Europa, é evidente a tendência a uma aceleração da destruição de capacidades produtivas e de postos de trabalho, para transferir-se para o único paraíso do mundo capitalista que é a China. Considero que esta transferência de capitais para a China significou uma reversão de processos anteriores de uma alta da composição orgânica do capital. A acumulação é intensiva em meios de produção e é intensiva e muito delapidadora da outra parte do capital constante, quer dizer, das matérias primas. A maciça criação de capacidades de produção no Setor I foi acompanhada por todos os mecanismos e o impulso que caracterizam o crescimento da China, mas o mercado final para sustentar toda essa produção é o mercado mundial, e uma retração deste colocará em evidência essa super-acumulação do capital.
Alguém como Aglietta, que estudou isto especificamente, afirma que realmente há super-acumulação, há um processo acelerado de criação produtiva na China, um processo que, no momento em que terminar - e tem de terminar - a realização de toda essa produção vai levantar problemas. Além disso, a China é realmente um lugar decisivo, porque até pequenas variações na sua economia determinam a conjuntura de muitos outros países no mundo. Foi suficiente que a procura chinesa por bens de investimento caísse um pouco, para que a Alemanha perdesse exportações e entrasse em recessão. As "pequenas oscilações" na China têm repercussões fortíssimas noutros lugares, como deveria ser evidente no caso da Argentina.
Para continuar a pensar e a discutir
E regresso ao que disse no início. Ainda que sejam comparáveis, as fases desta crise serão diferentes das de 29, porque naquela época a crise de superprodução dos Estados Unidos verificou-se desde os primeiros momentos. Depois aprofundou-se, mas soube-se de imediato que se estava diante de uma crise de superpodução. Agora, em contrapartida, estão adiando esse momento com diversas políticas, mas não vão poder fazê-lo muito mais.
Simultaneamente, e como ocorreu também na crise de 29 e nos anos 30, ainda que em condições e sob formas diferentes, a crise combinar-se-á com a necessidade, para o capitalismo, de uma reorganização total da expressão das suas relações de forças econômicas no marco mundial, marcando o momento no qual os Estados Unidos verão que a sua superioridade militar é somente um elemento, e um elemento bastante subordinado, para renegociar as suas relações com a China e outras partes do mundo. Ou vai chegar o momento no qual dará o salto para uma aventura militar de consequência imprevisíveis.
Por tudo isto, concluo que vivemos muito mais que uma crise financeira, mesmo estando agora nessa fase. Estamos diante de uma crise muitíssimo mais ampla. Ora bem, tenho a impressão, pelo tom das diferentes perguntas e observações que me fizeram, que muitos são da opinião que estou a pintar um cenário de tipo catastrofista, de desmoronamento do capitalismo... Na realidade, creio que estamos diante do risco de uma catástrofe, mas já não do capitalismo, e sim de uma catástrofe da humanidade. De certa forma, se tomarmos em conta a crise climática, possivelmente já existe algo assim...
A minha opinião (junto com Mészáros, por exemplo, mas somos muito poucos os que damos importância a isto) é que estamos diante de um perigo iminente. O dramático é que, de momento, isto afeta diretamente populações que não são levadas em conta: o que está ocorrendo no Haiti parece que não tem a menor importância histórica; o que acontece em Bangladesh não tem peso mais além da região afetada; muito menos o que acontece na Birmânia, porque o controle da Junta militar impede que ultrapasse as suas fronteiras. E o mesmo na China: discutem-se os índices de crescimento, mas não as catástrofes ambientais, porque o aparelho repressivo controla as informações sobre as mesmas.
E o pior é que essa "opinião", que é constantemente construída pelos meios de comunicação, está interiorizada muito profundamente, inclusive em muitos intelectuais de esquerda. Tinha começado a trabalhar e a escrever sobre tudo isto, mas com o começo desta crise, de alguma forma tive de voltar a ocupar-me das finanças, ainda que não o faça com muito gosto, porque o essencial parece-me que se joga num plano diferente.
Para terminar: o fato de que tudo isto ocorre depois desta fase tão larga, sem paralelo na história do capitalismo, de 50 anos de acumulação ininterrupta (salvo um pequeníssima ruptura em 1974/1975), assim como também tudo o que os círculos capitalistas dirigentes, e em particular os bancos centrais, aprenderam da crise de 29, tudo isso faz com que a crise avance de maneira bastante lenta.
Desde setembro do ano passado, o discurso dos círculos dominantes vem afirmando, uma e outra vez, que "o pior já passou", quando o certo é que, uma e outra vez, "o pior" estava por vir. Mas insisto no risco de minimizar a gravidade da situação, e sugiro que nas nossas análises e na forma de abordar as coisas deveríamos incorporar a possibilidade, no mínimo a possibilidade, de que inadvertidamente estejamos também interiorizando esse discurso de que, definitivamente, "não acontece nada"...
* François Chesnais é economista, faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França, é diretor de Carré Rouge e membro do conselho consultivo da revista Herramienta, com a qual colabora assiduamente.
Esta apresentação foi realizada no encontro organizado pela revista argentina "Herramienta" em 18 de Setembro de 2008. A transcrição e preparação para a sua publicação é de Aldo Casas.
Versão publicada no portal Esquerda.Net. Tradução para o português: Luis Leiria (Esquerda.Net)
(1) Karl Marx, El capital México, FCE, 1973, Vol. III, pág. 248.
(2) Idem.
(3) "El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera", en Herramienta Nº 37, marzo 2008.
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades? Há alternativas?
Antonio Martins
09/10/2008
Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades? Há alternativas?
Depois de terem vivido uma segunda-feira de pânico, os mercados financeiros operam, hoje (7/10), em meio a muito nervosismo. A bolsa de valores de Tóquio caiu mais 3%, apesar de o Banco do Japão injetar mais 10 bilhões de dólares no sistema bancário. Na Europa, há pequena recuperação das bolsas, diante de rumores sobre uma redução coordenada das taxas de juros, pelos bancos centrais. Em contrapartida, anunciou-se que a situação do Royal Bank os Scotland (RBJ) pode ser crítica e que outros bancos estariam sob forte pressão.
A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15 e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras norte-americanas deixou claro que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário. No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700 bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos inclusive entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram.
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também a chamada economia real. Por falta de financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria a mãe de todas as corridas contra os bancos, segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos quatro grandes europeus, convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país...
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de crédito dos médios e pequenos que já enfrentam dificuldades para captar recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e Europa estão viveram, na segunda-feira (6/10) um dia de quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos importantes. Em São Paulo, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar chegou a R$ 2,20.
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas injusto, mas também ineficaz e ineficiente. Injusto porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o Estado assuma seus títulos podres) sem assumir, em troca, parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas e ameaçadas de perder seus imóveis, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada ditadura dos acionistas, que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do sistema [4]. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
Antonio Martins é Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
'Deus mercado virou diabo',
Os Estados Unidos precisam regular, e rápido, o seu sistema financeiro sob pena de não conseguirem controlar a atual crise e perderem sua hegemonia no setor, advertiu a economista Maria da Conceição Tavares em entrevista à Reuters.
A reportagem é de Mair Pena Neto e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 25-09-2008.
Estabelecer as regras do jogo é a questão-chave para estabilizar o mercado, na opinião da professora da UFRJ e da Unicamp, uma das principais vozes da economia brasileira desde a década de 1970.
Mas seria interesse do capitalismo se regular? A economista avalia que, no momento, sim, pois o modelo neoliberal naufragou. "O Deus mercado virou diabo na terra do gelo."
A economista vê sinais de declínio dos EUA até pelo fato de o país não estar mais sozinho, como na crise de 1929, e ter que se entender com a China.
"Não escreveria hoje, como escrevi em 1984, a retomada da hegemonia
americana. Ou resolvem rápido essa crise ou, se deixarem para depois da eleição, não conseguem manter a hegemonia", afirmou *Conceição*, para emendar, taxativa:
"O século XXI não será norte-americano".
Leia, a seguir, mais opiniões da economista.
*BANCOS*
O Brasil ainda não está ameaçado. Os bancos brasileiros não estão metidos nessa ciranda. Há uma supervisão muito grande do Banco Central. Mesmo os derivativos a BM&F registra. Não tem controle de capitais, mas tem registro, o que significa que, se você quiser controlar, tem os instrumentos. As condições favoráveis do Brasil são as seguintes: bancos privados não estão metidos nessa especulação; não temos dívida externa pública; temos reservas; o problema de balanço de pagamentos é pequeno; o impacto das commodities não dá para perceber e somos muito abertos ao mundo. Temos mais comércio com a Argentina do que com os EUA. Los hermanos são mais importantes que o big brother.
*ECONOMIA REAL*
A crise não está na economia real. Só na Europa e no Japão, onde a ligação entre bancos e a economia real é mais forte. No caso americano, não. Há um setor da economia real americana que já começou a decadência, e por aí virá uma recessão, que é o imobiliário. Esse não tem saída. No ciclo recente, o setor que primeiro puxa a economia americana é o imobiliário, depois automóveis, os duráveis e, finalmente, o investimento. Ainda não está claro se serão afetados. O investimento das empresas depende do que vai acontecer com a Bolsa. Se ela continuar oscilando, mas não tiver uma depressão, sobrevive.
*RECESSÃO*
Acho que vai ter uma recessão, ninguém duvida. Mas uma coisa é uma recessão, outra é uma depressão. Não há dúvida de que ainda vai ter uma liquidação de ativos financeiros que eram fictícios. Essa parte da liquidação financeira da riqueza vai continuar e a gente não sabe até quando. A ligação entre essa crise e o setor real agora é o aperto global do crédito. Se continuar, vamos para uma recessão global. Sem crédito, não funciona capitalismo algum.
*ONTEM E HOJE*
A única coisa que pode dar um certo otimismo é que em 1930 os EUA estavam sozinhos, mas agora eles têm a China como parceira. Em 1930, os EUA não tinham sócios, todas as reservas do mundo estavam com eles. Agora, os EUA não têm reservas, só têm dívida. Todas as reservas em dólar estão basicamente na Ásia.
*DECLÍNIO DO IMPÉRIO*
Desta vez acho que é sinal do declínio [americano]. A menos que levem no bico os chineses e russos. Estão com problemas de petróleo. Tinham que ter tomado providências imediatas para regular o mercado futuro de petróleo.
Você não consegue mais fazer preço e os preços não têm tendência específica, sobem e descem de maneira enlouquecida. Nisso não se parece nada com 1930, que era uma crise de deflação de ativos e de preços. Agora é de liquidação de ativos financeiros e os preços... não têm uma tendência definida.
*SEM BRETON WOODS*
A complicação é como [os EUA] se entendem com Europa de um lado e China do
outro. Não são parceiros da mesma natureza. Infelizmente, não creio que vá haver uma reunião como *Breton Woods*. Não estamos caminhando para uma ordem mundial nova. Estamos caminhando para uma certa desordem. Os parceiros não vão seguir as ordens americanas, sobretudo em matéria financeira. É difícil um acordo por Estados. Acho que os EUA vão se regular primeiro e os demais países vão se adaptar, não creio em regulação conjunta. Seria ideal, mas não creio.
*FALHAS NO PACOTE*
O [Henry] *Paulson* [secretário do Tesouro dos EUA], homem de Wall Street, propôs salvar os bancos e só. Não disse mais nada sobre regulá-los. Os candidatos não estão satisfeitos com essa idéia de socializar os prejuízos. [Os EUA] fizeram isso na década de 1990. A raiz dessa crise é a crise de 1990, quando, em vez de regular, liberalizaram tudo na pretensão de que os mercados se auto-regulavam, sobretudo as grandes instituições que tinham rating. Aí o Congresso começou a chiar e aos poucos os bancos vão começar aceitando a supervisão.
*DEUS E O DIABO*
No momento, interessa ao capitalismo se regular. O neoliberalismo foi-se. O
Deus mercado virou diabo na terra do gelo. Sofreu golpe mortal. *Paulson* ainda queria manter dessa maneira, tanto que não falou em regulação, mas o pessoal cobra porque é dinheiro para burro... O governo terá de regular, não é um processo fácil. Terá que fazer acordo com comissões financeiras do Senado e da Câmara. Se conseguirem um acordo, aí já dá para todos irem para casa disputar as eleições.
*DONO DO CASSINO*
Ou os EUA resolvem quais são as regras agora, enquanto são donos do cassino, ou daqui a pouco não adianta nada porque não serão mais os donos. É mais fácil fazer acordo quando eu, que sou a banca, faço as regras e convido os demais a seguirem ou se adaptarem. Ou resolvem rápido ou se deixarem para depois da eleição não conseguem manter a hegemonia.
*SEM DINHEIRO*
O auxílio dos bancos centrais não resolveu nada, só injetou liquidez. Quando você injeta liquidez, mas os bancos não emprestam uns aos outros, mais sobe a taxa interbancária. Esse assunto não está resolvido. Foi isso que levou o *Paulson* a avançar para resgatar os títulos podres para que as instituições fiquem sãs.
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