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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Estudo sobre sofrimento no trabalho revela alto índice de suicídios entre bancários

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos O trabalho pode levar ao suicídio? Muitos suicidas na Ásia e na Europa usam como justificativa a pressão e o excesso para o fato de acabar com a própria vida. A prova disso, hoje, está nos 25 suicídios, só nos últimos 20 meses, ocorridos entre os funcionários da ex-estatal e hoje líder de mercado France Telecom. As cartas de despedida revelam o que vivem os funcionários da maior empresa de telecomunicações da França: "Eu me suicido por causa do meu trabalho na France Telecom. É a única causa.", escreveu em sua carta de despedida um engenheiro de 48 anos, casado e pai de três filhos. Outra funcionária, de 32 anos, escreveu ao pai, pouco antes de se jogar da janela do escritório: "O meu chefe não sabe, obviamente, mas serei a 23ª funcionária a se suicidar. Não aceito a nova reorganização do serviço. Vou mudar de chefe e, para passar por aquilo que eu vou passar, prefiro morrer. Deixo no escritório a bolsa com as chaves e o celular. Levo comigo a minha carta de doadora de órgãos, nunca se sabe. Não gostaria que você recebesse uma mensagem desse gênero, mas estou mais do que perdida. Quero-lhe bem, papai". A IHU On-Line conversou com o professor Marcelo Finazzi, que pesquisa sofrimento no trabalho e estudos organizacionais críticos sobre o tema. Ele revela que entre os bancários, a incidência de patologias e suicídios tem um grande índice. "A relevância do setor bancário na economia nacional e a sofisticação dos métodos gerenciais dos bancos, os quais passam por reengenharias permanentes nos últimos 20 anos, constituiu-se em valiosa oportunidade para o estudo de como mudanças organizacionais bruscas podem interferir na subjetividade do trabalhador. O suicídio, que talvez seja o ato que melhor traduza o ápice do sofrimento", apontou ele, que é bacharel e mestre em administração pela Universidade de Brasília. Confira abaixo a entrevista IHU On-Line - O que o levou a pesquisar o suicídio motivado pelas condições de trabalho? Marcelo Finazzi - Durante o início das pesquisas sobre sofrimento no trabalho, tomei contato com relevantes estudos sobre a incidência das mais variadas patologias entre bancários, inclusive algumas descrições gerais sobre uma onda de suicídios na década de 1990. Paralelamente, soube que a categoria era uma das quais possuía o melhor pacote de benefícios sociais. Essa aparente ambiguidade me intrigou e me senti instigado a aprofundar os estudos. A relevância do setor bancário na economia nacional e a sofisticação dos métodos gerenciais dos bancos, os quais passam por reengenharias permanentes nos últimos 20 anos, constituiu-se em valiosa oportunidade para o estudo de como mudanças organizacionais bruscas podem interferir na subjetividade do trabalhador. O suicídio, que talvez seja o ato que melhor traduza o ápice do sofrimento, apresentou-se naturalmente como o objeto para a compreensão das relações de trabalho contemporâneas. Para minha surpresa, após aprofundar as leituras, constatei que são raros os estudos que correlacionam organização do trabalho e suicídio. IHU On-Line - Segundo seus estudos, a ideação suicida [vontade de tirar a própria vida] está associada às pressões no ambiente de trabalho. Que pressões são essas? Marcelo Finazzi - Na verdade, o suicídio é um fenômeno altamente complexo que depende de inúmeras variáveis. O que fiz foi avaliar se fatores adversos relacionados à organização do trabalho poderia ser um fator - dentre muitos outros - capaz de contribuir para que o trabalhador desenvolvesse pensamentos suicidas e, em casos extremos, vir a cometê-lo. É importante salientar que a imensa maioria dos trabalhadores, quando submetidos ao sofrimento e se vêem impossibilitados de superá-lo, costuma desenvolver reações menos radicais, como, por exemplo, transtornos musculoesqueléticos, mentais, estomacais, nervosos, cardíacos, reumáticos e dermatológicos. E quais são essas causas de sofrimento que contribuem para que os sujeitos desenvolvam tais reações? Resumidamente, pressões infindáveis para o cumprimento de metas de produtividade, poucos trabalhadores para muitas tarefas, discrepância entre o trabalho prescrito e o real, condições ergonômicas inadequadas, trabalho fragmentado, além de questões outras que passam ao largo dos objetivos formais da organização, como lideranças narcisistas destrutivas - que são os responsáveis pelas violências do assédio e que agem em nome de seus interesses pessoais, mesmo que ao custo do terror e, paradoxalmente, do decréscimo da produtividade -, redes de poder, ciúmes, inveja, autoritarismo e perseguições gratuitas. Não podemos esquecer que o medo do desemprego ou de retaliações também abre uma brecha para o sofrimento, pois a capacidade de mobilização dos trabalhadores diminui e, assim, estes acabam aceitando condições laborais mais penosas. Por fim, cabe ressaltar que as reengenharias organizacionais também costumam resultar em enorme sofrimento, pois quase sempre geram demissões, mais trabalho para os que mantêm o emprego e, não raro, desorganização completa da vida pessoal do sujeito. IHU On-Line - O senhor afirma que, na nova organização do trabalho, o bancário é convidado a ser dono da própria carreira em nome do lucro. Como isso se manifesta? Marcelo Finazzi - O estudo demonstrou que qualquer pessoa considerada normal está sujeita a passar pelo mesmo processo de perda do equilíbrio que os entrevistados passaram: trabalho vazio ou com pouco significado, cobranças intermináveis por resultados ou, de outra forma, ausência de trabalho, sujeitando o trabalhador à ociosidade, desqualificações sucessivas pelo pouco trabalho feito ou pela impossibilidade de cumprir o excesso de tarefas, relações sociais superficiais e chefias autoritárias. Por mais equilibrada que seja a pessoa, caso não se encontre soluções práticas para livrar-se das causas do sofrimento, seja por meio de uma remoção para outro setor na empresa, seja por meio da troca de emprego ou aposentadoria, a possibilidade de adoecimento é enorme. Alguns somatizam doenças físicas, outros desenvolvem transtornos mentais. De forma extrema, alguns entendem que a vida não merece ser vivida, optando pela radicalização por meio do suicídio. A perda do equilíbrio se completa pela constatação de que o discurso reiteradamente veiculado nos informativos da organização, impregnados de mensagens de amor à empresa e empregados felizes, contrasta violentamente com a percepção de realidade do trabalhador. O mundo prático não é feito de afabilidades e, muito menos, da empresa da solicitude, que ampara paternalmente o empregado. O trabalhador, na nova organização do trabalho, é o dono de sua carreira, o único responsável pelos infortúnios que for acometido - afinal, se não estiver satisfeito, que se demita, pois há muitos lá fora querendo a vaga. Quando os entrevistados precisaram das empresas, não encontraram nenhum apoio efetivo. Paradoxalmente, entretanto, quando ingressaram foram submetidos a intenso processo de assimilação da cultura organizacional como se, a partir de então, fizessem parte de um clube de predestinados. No início, acreditam incondicionalmente no discurso, entregando-se de corpo e alma aos arbítrios das empresas. O choque com outra realidade - aquela que, além de não ser divulgada, é cuidadosamente encoberta - comuta o sentimento inicial de pertencimento em enganação. A dor moral do assédio se acentua, dessa forma, com a percepção literal de que algo está errado, que os discursos de alegria e felicidade irrestritas talvez estejam apenas no imaginário daqueles que os idealizaram. IHU On-Line - Na sua avaliação, e a partir dos seus estudos, qual é o fator mais determinante que leva o trabalhador à desestabilização e à perda da vontade de viver? Marcelo Finazzi - Sem dúvida, a falta de reconhecimento pelo esforço despendido para a realização das tarefas. O trabalho é poderosa fonte de identidade e pertencimento social: o que os sujeitos esperam, no mínimo, é a valorização do que está sendo feito em prol dos objetivos organizacionais. O problema é que, em algumas ocasiões, o sujeito se dedica durante 10, 20, 30 anos, desenvolve laços afetivos com a empresa e, de repente, é convidado a se retirar ou é excluído compulsoriamente, como se toda a dedicação incondicional não tivesse valor algum. IHU On-Line - É possível traçar características comuns entre aqueles que tomaram essa atitude radical? Marcelo Finazzi - Sim. Manifesto-me com base nos resultados do meu estudo. Primeiramente, os sujeitos buscaram, de todas as formas, soluções concretas para o alívio da dor. Com o tempo, porém, as oportunidades foram sendo eliminadas, uma a uma, restando poucas opções. Ao mesmo tempo, o processo de assédio - ou outra circunstância causadora do sofrimento - se intensificava na mesma proporção em que procuravam apoio institucional das empresas, que se mostravam incapazes de apresentar qualquer opção prática para resolver os conflitos. Aquela possibilidade antes tão remota, que é a vontade de morrer, começa a ganhar consistência e, na ausência de algo melhor, é a oportunidade que se apresenta para sair do "buraco negro" em que se encontram, dia após dia mais profundo. O apoio médico e psicoterápico adequado, aliado a ações efetivas das organizações para protegê-los dos assédios que vivenciavam, talvez fossem suficientes para que resgatassem a auto-estima e recobrassem a vontade de viver. O que eles precisavam era de um ambiente de trabalho salutar para o desempenho de suas funções com respeito e satisfação. Não era o simples afastamento para tratamento médico. A psiquiatrização do problema transferiu para a seara médica problemas da organização do trabalho e de administração deficiente de pessoal. Era mais fácil medicá-los com antidepressivos e ansiolíticos do que corrigir estruturas gerenciais anacrônicas ou punir gerentes autoritários. O que eles não queriam era ficar em casa, recebendo os salários como esmola. É bem provável que o melhor tratamento era que continuassem trabalhando, com as mentes ocupadas e a sensação das tarefas bem desempenhadas. A morte foi a solução para se livrarem dos constrangimentos diários. É importante salientar que, antes das situações adversas do trabalho, suas condições psicológicas eram normais. Tinham problemas externos, como qualquer pessoa, mas os administravam sem maiores transtornos. Esse é o ponto crucial das histórias deles: o processo que desencadeou a ideação suicida, culminando na tentativa de morte, relacionou-se com as dificuldades relacionadas com o trabalho. Tinham insônia ou acordavam inexplicavelmente no meio da madrugada com pensamentos fixos no trabalho. As crises de choro se tornavam compulsivas pelo simples fato de deixarem suas casas em direção ao escritório. Durante o expediente, as crises também eram frequentes, perdurando noite a dentro. Os domingos eram de grande angústia, justamente porque haveria mais uma semana insuportável para ser vencida. IHU On-Line - Há casos de trabalhadores que deixaram registros? Marcelo Finazzi - Sim, há. Temos o conhecimento de bilhetes e contatos telefônicos de despedida previamente às tentativas de suicídio. Cabe salientar, porém, que não há uma regra e, ao contrário do que o senso comum imagina, muitos suicidas preferem não manifestar formalmente os motivos do ato. Na minha pesquisa, por exemplo, os pesquisados que tentaram o suicídio - mas sobreviveram - não deixaram bilhetes de despedida ou qualquer aviso prévio: para que alardear os motivos de um ato cuidadosamente tramado no vazio da solidão? Alguma palavra seria capaz de explicar com precisão o que aquele ato, por si só, representaria? Buscaram ajuda e não encontraram. Não haveria razões para se justificarem perante aqueles que não se importaram com eles, para que os algozes nutrissem compaixão ao menos depois da morte. Nenhum deles parecia demonstrar o sentimento de autopiedade típico de pessoas que simulam a morte. Eles queriam apenas morrer e ponto final. Um dado importante apareceu na pesquisa: todos manifestaram a vontade de morrer mediante acidente automobilístico e, inclusive, chegaram a planejá-lo. Quantos acidentes, na verdade, não se tratam de morte facilitada? IHU On-Line - O senhor considera que os seus estudos permitem um paralelo com o que está acontecendo na France Telecom? É possível identificar causas comuns? Marcelo Finazzi - O grande problema das organizações contemporâneas, incluindo a France Telecom, é que as reestruturações são conduzidas na base da força e da coação, sem diálogo. É óbvio que mudanças são imprescindíveis: curiosamente, entretanto, pensam-se nos resultados financeiros, no lucro dos acionistas, mas as necessidades das pessoas são negligenciadas - justamente aquelas que cinicamente são chamadas de colaboradores ou consideradas o maior ativo. Na minha pesquisa, ficou bastante nítido que a onda de suicídios de bancários, na década de 1990, tem características distintas dos suicídios dos anos 2000. Na primeira fase, os suicídios - quando puderam ser vinculados ao contexto do trabalho - relacionaram-se com as transformações radicais do setor em intervalo muito curto de tempo. Sucessivos planos de desligamento, com demissões contínuas, em bancos públicos e privados, criaram pânico na categoria. Por exemplo, apenas no segundo semestre de 1996, foram cortadas quase 150 mil vagas no setor. Os suicidas da primeira fase são aqueles que sucumbem ao terror psicológico de ter que ostentar felicidade, mesmo sabendo que, no dia seguinte, poderiam figurar na próxima lista de demitidos ou de serem removidos compulsoriamente para outros cargos ou cidades. São aqueles que efetivamente foram vítimas das reestruturações, pois perdiam os cargos, os empregos e, sobretudo, a esperança. É o suicídio decorrente da incredulidade frente ao radicalismo da situação, no curto prazo, da ruptura de relações trabalhistas estáveis, do rompimento dos vínculos afetivos para um estado de caos permanente. Os suicídios da segunda fase, ou seja, a partir dos anos 2000, externalizam as consequências negativas, no longo prazo, das mudanças estruturais introduzidas com as reengenharias nos métodos de produção. O trabalho se torna fardo pesado, pois, o fator custo restringe a contratação de novos trabalhadores, sobrecarregando os pouco existentes. Os que ficam são compelidos a trabalhar mal, na medida em que são obrigados a desempenhar múltiplas tarefas, com velocidade crescente, sujeitando-se a erros. Além disso, os assédios se disseminam como práticas comuns para fazer com que os trabalhadores produzam cada vez mais ou, de outra forma, como mecanismo de pressão para eliminar os indesejáveis. O medo é utilizado como estratégia de intimidação, pois, o contingente de reserva, que são os desempregados, pressiona aqueles que estão empregados a se sujeitarem a condições laborais precárias. É assim que o sofrimento do trabalhador gradativamente aumenta, conduzindo-o ao desenvolvimento das mais variadas patologias e transtornos mentais, à medida que os mecanismos de defesa empregados para aliviar o sofrimento vão sendo um a um eliminados. O adoecimento e, de forma extrema, o suicídio, tornam-se fenômenos endêmicos. IHU On-Line - É possível afirmar que o cotidiano do trabalhador bancário é de sofrimento? Marcelo Finazzi - Seriam precisos estudos bastante aprofundados para fazer-se tal generalização. Conheço muitos bancários que são orgulhosos por pertencerem à categoria, manifestam satisfação no trabalho desempenhado e se julgam realizados profissionalmente. Muitos pesquisadores estão se debruçando para que as organizações façam do trabalho - essa fonte poderosa para emancipação das pessoas, tanto do ponto de vista financeiro quanto social - indutor de prazer, não de sofrimento. Infelizmente, entretanto, muitas empresas têm empregado o sofrimento como mecanismo para o aumento de produtividade ou redução de custos, adotando a truculência dessa lógica como instrumento gerencial. Um exemplo: explorar psicologicamente o medo de desemprego ou de retaliações para que o sujeito trabalhe além da jornada regulamentar ou cumpra as metas de produção - as quais, não raro, são atingidas com base em artifícios escusos ou mediante aumento potencial de falha humana. Falha essa, aliás, que o trabalhador também será penalizado caso vier a cometê-la. Outros administradores, que possuem fragilidade de caráter ou personalidade perversa, apropriam-se do poder que estão investidos para perseguir gratuitamente os desafetos. O que posso afirmar é que, para um número crescente de pessoas, lotadas em empresas dos mais diversos setores econômicos, o trabalho tem sido um fardo que somente suportam porque precisam sobreviver. IHU On-Line - Os sindicatos dos bancários têm colocado em pauta esse tema? Marcelo Finazzi - O suicídio, de forma específica, somente esteve em pauta nos anos 1990, por conta de uma onda de suicídios na categoria. Houve audiências no Congresso Nacional para tratar do assunto, inclusive, com ampla repercussão dos casos na mídia. Posteriormente, o tema caiu no esquecimento, mas perdurou no imaginário dos bancários: é interessante que, em conversas com trabalhadores mais antigos, todos conhecem alguma morte. Por outro lado, tenho observado, por meio da leitura dos informativos editados pelos sindicatos, que tais entidades estão empenhadas em denunciar práticas gerenciais degradantes e alertar a categoria sobre os malefícios dos assédios, além de disponibilizar assessoria especializada em segurança e saúde no trabalho. IHU On-Line - O senhor tem conhecimento de evidências de altas taxas de suicídios em outras categorias de trabalhadores? Marcelo Finazzi - No Brasil, encontrei somente um único estudo sobre o suicídio no contexto do trabalho. No Japão, por exemplo, o assunto é muito pesquisado, e há evidências significativas, publicadas em respeitados periódicos científicos, de que os métodos de gestão empregados por lá, os quais inspiraram (e ainda inspiram) as reestruturações produtivas mundo afora, têm sido diretamente associados a ocorrências de desordens mentais e suicídio de trabalhadores japoneses. Principais causas: falências de empresas, programas de demissão e trabalho sob condições severas. Cabe ressaltar, porém, que muitos pesquisadores brasileiros têm estudado os efeitos deletérios da organização do trabalho sob a subjetividade do trabalhador, evidenciando práticas gerenciais perniciosas nos mais variados formatos organizacionais. Destaco, por exemplo, aqueles que se dedicam à psicodinâmica do trabalho, à sociologia clínica, aos estudos organizacionais críticos e à saúde do trabalhador. De forma prática, estudar o suicídio é tarefa árdua. Estudar o suicídio, no contexto do trabalho, é ainda mais difícil: as bases de dados oficiais não são muito confiáveis; os dados com relativo nível de confiabilidade restringem-se aos anos recentes; há sérios problemas de subnotificação de suicídios; familiares e amigos têm vergonha ou repulsa de falar sobre o assunto - que é tabu em nossa sociedade; em muitas empresas, o trabalhador é demitido ao primeiro sinal de distúrbios físico ou mental, e as terceirizações diluem o tamanho das categorias profissionais. Por fim, as empresas costumam esconder as ocorrências ou, quando isso não é possível, fazem o possível para minimizá-las, atribuindo os óbitos a problemas pessoais do falecido, distúrbios psiquiátricos ou, em última instância, fazem comparações epidemiológicas absurdamente descabidas entre as taxas de suicídio da empresa e... do país! Categorias de trabalhadores potencialmente sujeitas ao sofrimento são daqueles setores muito competitivos: eu apostaria pesquisar os trabalhadores das empresas de telecomunicações brasileiras, incluindo aqueles que perderam os seus empregos. É possível que os resultados sejam assustadores.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A irresponsabilidade da “elite” gaúcha

Marco Aurélio Weissheimer No dia seguinte à vitória de Germano Rigotto nas eleições de 2002, o jornal Zero Hora publicou um editorial saudando a derrota do governo Olívio Dutra (PT), que teria mergulhado o Estado em conflitos, e a vitória do candidato “pacificador” do PMDB. O mesmo discurso foi repetido por lideranças empresariais do Estado que apontavam o futuro governo Rigotto como uma oportunidade para a retomada de um clima de paz propício aos negócios. Esse discurso ignorava completamente o desempenho econômico do Estado no período do “governo de conflitos” (1999-2002). Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação de Economia e Estatística (FEE), entre 1999 e 2001, o PIB industrial gaúcho cresceu seis vezes mais que o do Brasil, governado então por Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O crescimento do Estado neste período foi de 11,7% contra 1,7% do país (e –4,7% no período entre 1995 e 1998, do governo Antônio Britto). No mesmo período, o PIB agropecuário gaúcho cresceu 23,8%, contra 16,9% do país e 4,3% do governo Britto. Com a vitória da RBS e de seus agentes políticos “pacificadores”, foi retomada no Estado a cultura da “gestão modernizadora do Estado” que tinha no empresário Jorge Gerdau Johhanpeter e seu mítico PGQP (Programa Gaúcho da Qualidade e Produtividade) um de seus principais gurus. A era do PGQP atravessou o governo Rigotto, chegou ao governo Fogaça, em Porto Alegre, e prosseguiu no governo Yeda Crusius, combinado com o anunciado “novo jeito de governar”. Foi no governo Rigotto também, em 2003 para ser mais preciso, que, segundo o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, iniciou o esquema de fraude que acabaria desviando cerca de R$ 44 milhões do Detran. Um dos principais acusados de chefiar o esquema, o deputado federal José Otávio Germano (PP) era então o secretário da Segurança Pública, substituindo o “conflituoso” José Paulo Bisol. No último domingo, o mesmo jornal Zero Hora publicou uma matéria tratando da queda do PIB gaúcho na última década e da perda de poder econômico do Estado no cenário nacional. No plano político então, a situação é ainda pior. O Rio Grande do Sul não só perdeu poder político como virou tema de chacota nacional, graças ao desastrado governo de Yeda Crusius. Um governo onde o partido da governadora que anunciou um “novo jeito de governar” chega ao seu terceiro ano contratando uma empresa para ajudar a “construir um modelo de governo”. Os responsáveis pela decadência política e econômica do RS na última década procuram agora esconder sua responsabilidade pelo que está acontecendo, como se tudo não passasse de um acidente da natureza. Onde está o balanço da RBS sobre as posições políticas que abraçou na última década? E as fórmulas milagrosas do Sr. Gerdau (sempre ávido em conquistar “incentivos” fiscais), contribuíram no que mesmo para o desenvolvimento do Estado? E os padrinhos políticos de Yeda Crusius e seu grupo, por que se esforçam agora em não aparecer ao lado da governadora? Qual o balanço do senador Pedro Simon que selou seu apoio a Yeda com um carinhoso beijo na testa? Silêncio. Silêncio é a resposta a todas essas questões. A chamada “elite” gaúcha revela-se absolutamente irresponsável. Literalmente irresponsável. Não responde por seus atos e por suas escolhas. E tenta continuar aparecendo como portadora da mensagem do progresso e da modernidade, apoiada em agentes políticos que elevaram a mediocridade e a covardia a alturas nunca dantes navegadas. É assim que está o Rio Grande do Sul neste início do século XXI.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

DIEESE analisa desafios de uma nova legislação para petróleo e gás

DIEESE analisa desafios de uma nova legislação para petróleo e gás Escrito por João Caetano Desafios rumo à construção de uma nova legislação para a indústria de petróleo e gás natural no Brasil O DIEESE colocou nesta quinta-feira (15), em seu sítio na internet, o trabalho Desafios rumo à construção de uma nova legislação para a indústria de petróleo e gás natural no Brasil,um estudo que destaca a importância das recentes descobertas de petróleo e gás na camada de pré-sal, discorre sobre a história da exploração no Brasil e aborda a questão da nova legislação para o setor.   Confira a seguir a apresentação do estudo disponível na página do DIESSE e o link para acesso ao trabalho: Desafios rumo à construção de uma nova legislação para a indústria de petróleo e gás natural no Brasil Com as descobertas realizadas na região do pré-sal, o Brasil passa a ser um dos maiores detentores de reservas de petróleo no mundo. Estas novas reservas são estimadas entre 80 e 200 bilhões de barris de óleo ou equivalente (BOEs) o que pode tornar o Brasil o 5º ou o 2º país em reservas de petróleo provadas, a depender da capacidade das áreas do pré-sal. A exploração desta riqueza - estimada entre US$ 5,6 e US$ 14 trilhões - envolve investimentos previstos, até 2013, US$ 25 bilhões, que devem gerar uma produção de 1,8 milhões de barris de óleo /dia. Até 2020, os investimentos para a região chegam a US$ 111 bilhões. Apenas até 2013, 13 mil trabalhadores devem ser contratados por concurso e as atividades da Petrobras devem exigir 267 mil empregos diretos Toda esta riqueza potencial precisa servir para impulsionar a industrialização do país e os recursos devem ser utilizados como um passaporte para o desenvolvimento, financiando, além do resgate de parte da dívida social, investimentos maciços em educação e desenvolvimento tecnológico. Isto implica discutir, por exemplo, quem vai controlar estas reservas? Quem vai definir o ritmo de exploração desta riqueza? Como serão minimizados os impactos ambientais? Que modelo de exploração deve ser adotado? Qual o destino do dinheiro originado dessa exploração? A importância da descoberta das novas reservas de petróleo no Brasil e a discussão do projeto para a legislação que deve estabelecer o futuro da exploração e produção do petróleo e gás natural no Brasil estão em Estudos e Pesquisas 48, Desafios rumo à construção de uma nova legislação para a indústria de petróleo e gás natural no Brasil.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Trabalho morto

Trabalho morto: Marx e Lênin mereceriam Nobel de Economia - Paul Craig Roberts (*) - Counterpunch - http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16188&boletim_id=602&componente_id=10118 Marx previu a miséria crescente dos trabalhadores e Lênin previu a subordinação da produção de bens à acumulação de lucros do capital financeiro com a compra e venda de instrumentos de papel. As suas previsões são de longe superiores aos "modelos de risco" aos quais tem sido atribuído o Prêmio Nobel e estão mais próximos da moeda do que as previsões do presidente do Federal Reserve, de secretários do Tesouro dos EUA e de economistas nobelizados tais como Paul Krugman, o qual acredita que mais crédito e mais dívida são a solução para a crise econômica. A análise é de Paul Craig Roberts. "O capital é trabalho morto, o qual, como um vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo, e quanto mais sobreviver, mais trabalho sugará". (Karl Marx) Se Karl Marx e V. I. Lênin hoje estivessem vivos, seriam os principais candidatos ao Prêmio Nobel de Ciência Econômica. Marx previu a miséria crescente dos trabalhadores e Lênin previu a subordinação da produção de bens à acumulação de lucros do capital financeiro com a compra e venda de instrumentos de papel. As suas previsões são de longe superiores aos "modelos de risco" aos quais tem sido atribuído o Prêmio Nobel e estão mais próximos da moeda do que as previsões do presidente do Federal Reserve, de secretários do Tesouro dos EUA e de economistas nobelizados tais como Paul Krugman, o qual acredita que mais crédito e mais dívida são a solução para a crise econômica. Na primeira década do século XXI não houve qualquer aumento no rendimento real dos trabalhadores americanos. Houve sim um declínio agudo na sua riqueza. No século XXI os americanos sofreram dois grandes crashes no mercado de acções e a destruição da sua riqueza imobiliária. Alguns estudos concluíram que os rendimentos reais dos americanos, excepto para a oligarquia financeira dos super ricos, são menores hoje do que na década de 1980 e mesmo da de 1970. Não examinei estes estudos de rendimento familiar para determinar se eles foram enviesados pelo aumento nos divórcios e pela percentagem de famílias monoparentais. Contudo, durante a última década é claro que o salário líquido real declinou. A causa principal deste declínio é a deslocalização (offshoring) de empregos americanos de alto valor acrescentado. Tanto empregos na manufatura como em serviços profissionais, tais como engenharia de software e trabalho com tecnologia de informação, foram relocalizados em países com forças de trabalho grandes e baratas. A aniquilação de empregos classe média foi disfarçada pelo crescimento na dívida do consumidor. Quando os rendimentos dos norteamericanos cessaram de crescer, a dívida do consumidor expandiu-se para substituir o crescimento do rendimento e manter a procura do consumir em ascensão. Ao contrário de aumentos nos rendimentos do consumidor devidos ao crescimento da produtividade, há um limite para a expansão do endividamento. Quando aquele limite é atingido, a economia cessa de crescer. A pauperização dos trabalhadores não resultou do agravamento de crises de super-produção de bens e serviços mas sim do poder do capital financeiro para forçar a relocalização da produção para mercados internos em terras estrangeiras. As pressões da Wall Street, incluindo pressões de tomadas de controle (takeovers), forçaram firmas manufatureiras americanas a "aumentar os rendimentos dos acionistas". Isto foi feito pela substituição de trabalho americano por trabalho barato estrangeiro. Corporações deslocalizadas ou que passam a encomendar fora a sua produção manufactureira, divorciando portanto os rendimentos dos americanos da produção dos bens que eles consomem. O passo seguinte no processo aproveitou-se da alta velocidade da Internet para mover empregos em serviços profissionais, tais como engenharia, para fora. O terceiro passo foi substituir o resto da força de trabalho interna por estrangeiros trazidos para cá a um terço do salário com o H-1B [1] , L-1 [2] e outros vistos de trabalho. Este processo pelo qual o capital financeiro destruiu as perspectivas de emprego de norteamericanos foi endossado pelo economistas do "livre mercado", os quais receberam privilégios pela deslocalização de firmas em troca da propaganda de que os americanos beneficiar-se-ia com uma "Nova Economia" baseada em serviços financeiros, e pelos seus sócios no negócio da educação, os quais justificavam vistos de trabalho para estrangeiros com base na mentira de que a América produz poucos engenheiros e cientistas. Nos dias de Marx, a religião era o ópio das massas. Hoje são os media. Basta ver a informação dos media que facilita a capacidade da oligarquia financeira de iludir o povo. A oligarquia financeira está a anunciar uma recuperação enquanto o desemprego nos EUA e os arrestos de lares estão em aumento. Este anúncio deve a sua credibilidade às altas posições de onde vêem, aos problemas de informação sobre folhas de pagamento que exageram o emprego e à eliminação para dentro do buraco da memória de qualquer americano desempregado durante mais de um ano. Em 2 de Outubro o estatístico John William do www.shadowstats.com informou que o Bureau of Labor Statistics havia anunciado uma revisão da sua estimativa preliminar do indicador anual do emprego em 2009. O BLS descobriu que o emprego em 2009 fora super-declarado em cerca de um 1 milhão de postos de trabalho. John Williams acredita que a diferença foi realmente de dois milhões de postos de trabalho. Ele informa que "o modelo nascimento-morte actualmente acrescenta [um ilusório] ganho líquido de cerca de 900 mil empregos por ano à informação sobre emprego". O número de empregos nas folhas de pagamentos não agrícolas é sempre a manchete da informação. Contudo, Williams acredita que o inquérito às famílias de desempregados é estatisticamente mais correcto do que o inquérito às folhas de pagamento. O BLS nunca foi capaz de reconciliar a diferença nos números nos dois inquéritos ao emprego. Na sexta-feira passada, o número de empregos perdidos apresentado nas manchetes era de 263 mil para o mês de Setembro. Contudo, o número no inquérito às famílias era de 785 mil empregos perdidos no mês de Setembro. A manchete da taxa de desemprego de 9,8% é uma medida reduzida ao essencial que em grande medida subdeclara o desemprego. As agências de informação do governo sabem disto e relatam outro número de desempregados, conhecido como U-6. Esta medida do desemprego nos EUA fixava-se nos 17% em Setembro de 2009. Quando os trabalhadores desencorajados pelo desemprego a longo prazo são acrescentados outra vez ao total dos desempregados, a taxa de desemprego em Setembro de 2009 eleva-se a 21,4%. O desemprego de cidadãos americanos poderia realmente ser ainda mais alto. Quando a Microsoft ou alguma outra firma substitui milhares de trabalhadores americanos por estrangeiros com vistos H-1B, a Microsoft não relata um declínio de empregados na folha de pagamento. No entanto, vários milhares de americanos ficam então sem empregos. Multiplique isto pelo número de firmas dos EUA que estão apoiar-se em companhias estrangeiras fornecedoras de mão-de-obra para tecnologia de informação ("body shops") para substituir a sua força de trabalho americana com trabalho barato estrangeiro ano após ano e o resultado são centenas de milhares de desempregados americanos não relatados. Obviamente, com mais de um quinto da força de trabalho americana desempregada e os remanescentes enterrados em hipotecas e dívidas de cartões de crédito, a recuperação económica não está no quadro. O que está acontecendo é que as centenas de milhares de milhões de dólares de dinheiro do TARP dado aos grandes bancos e os milhões de milhões (trillions) de dólares que foram acrescentados ao balanço da Reserva Federal foram despejados no mercado de acções, produzindo uma outra bolha, e na aquisição de bancos mais pequenos por bancos "demasiado grandes para falir". O resultado é mais concentração financeira. A expansão da dívida subjacente a esta bolha corroeu novamente a credibilidade do dólar como divisa de reserva. Quando o dólar começar a ir, tomadores de decisão em pânico elevarão as taxas de juros a fim de proteger a capacidade de contração de empréstimos do Tesouro. Quando as taxas de juros ascendem, o que resta da economia dos EUA afundará. Se o governo não pode contrair empréstimos, ele imprimirá dinheiro para pagar as suas contas. A hiper-inflação atingirá a população norteamericana. O desemprego maciço e a inflação maciça infligirão ao povo norteamericano uma miséria que nem mesmo Marx e Lênin poderiam conceber. Enquanto isso, economistas da América continuam fingindo que estão lidando com uma recessão normal do pós-guerra que requer meramente uma expansão da moeda e do crédito a fim de restaurar o crescimento econômico. 07/Outubro/2009 [1] H-1B: categoria de visto para não imigrantes que permite ao patronato dos EUA procurar ajuda temporária de estrangeiros qualificados que tenham bacharelado. [2] L-1: documento de visto para entrar nos EUA como não imigrante e válido por períodos de tempo de até três anos. São geralmente concedidos para empregados de companhias internacionais com escritórios nos EUA. [*] Ex-secretário assistente do Tesouro na administração Reagan, co-autor de The Tyranny of Good Intentions. (PaulCraigRoberts@yahoo.com) O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/roberts10072009.html Este artigo (em português) encontra-se em http://resistir.info/.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

2º Marcha Nacional dos Vigilantes

Trabalhadores reunidos nos dias 20 e 21, em Brasília, na luta pelo Adicional de Risco de vida/Periculosidade Após o adiamento a que fomos obrigados em agosto, estamos confirmando para os dias 20 e 21 de outubro próximo, em Brasília - DF, a realização da II Marcha Nacional dos Vigilantes, focada, entre outras coisas, nos seguintes eixos: - Luta pela aprovação dos PL de Periculosidade/Risco de Vida; - Luta pela aprovação do PL de Aposentadoria Especial do Vigilante; - Defesa dos direitos dos vigilantes contra as empresas caloteiras; - Luta contra os Projetos que institui o malote de tinta, guarda/vigia e que precariza as condições de trabalho dos vigilantes; Com a vitoriosa mobilização de lideranças mantida em agosto, que resultou na aprovação na CAS - Comissão de Assuntos Sociais do Senado de mais um Projeto de Lei que institui Periculosidade para a nossa categoria (PL nº. 387/2008 do Senador Paulo Paim) e o destravamento do PL 1.033/03 da Deputada Vanessa Graziottin, com a derrubada dos requerimentos que segurou na Câmara, bem como a promessa do Deputado Filipe Pereira de também liberar para tramitação regular o PL 4.436/08 da Senadora Serys Slhessarenko, a nossa Marcha passa a ter uma importância decisiva para que a Câmara dos Deputados vote ainda este ano as propostas que possibilitem o adicional de periculosidade/risco de vida. Após dezembro deste ano, corremos o risco de esperarmos mais alguns anos pela aprovação deste importante beneficio para a nossa categoria. A mobilização realizada para agosto deve ser reforçada e mais gente precisa vim a Brasília em outubro. As tarefas de mobilização também necessitam do encaminhamento nos Estados e municípios, com recolhimento de assinatura num abaixo-assinado (sugestão Anexa), manifesto junto aos Deputados, atos políticos, moções nas câmaras municipais e assembléias legislativas, etc. Pedimos ainda que sejam observadas as seguintes orientações: a) Entre as atividades da Marcha estão sendo articuladas, audiências públicas na Câmara e no Senado, Plenárias, audiências com autoridades, visita a parlamentares de cada Estado e atos públicos; b) A partir do próximo dia 1º de outubro estaremos dialogando com cada Sindicato para levantamento de expectativas e como cada um estará se organizando para esta Marcha; c) De igual forma estaremos preparando material de comunicação (jornal, manifesto, etc.) e tratando com cada entidade sobre a sua utilização como instrumento de mobilização e luta; d) As delegações deverão estar chegando até às 09 horas do dia 20 e retornando ao final do dia do dia 21. Na certeza de contarmos com a mobilização, participação, contribuição e de nos encontramos em Brasília na II Marcha Nacional dos Vigilantes, subscrevemos. José Boaventura Santos Presidente da Confederação Nacional dos Vigilantes e Prestadores de Serviços

Pochmann na Jornada pelo Desenvolvimento

Escrito por Leonardo Severo "Cada vez mais, o sindicalismo deve ser protagonista de futuro, construtor do amanhã" "Cada vez mais, o sindicalismo deve ser protagonista de futuro, construtor do amanhã, interferindo nas transformações do mundo do trabalho a partir do aumento da organização e da consciência da classe, para que a sociedade do conhecimento seja a da abundância e não da escassez, da cooperação e não da competição", afirmou o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), professor Márcio Pochmann, na mesa de abertura da Oficina "Mercado de Trabalho, educação, saúde e proteção social - políticas públicas para o desenvolvimento sustentável", realizada quarta-feira (14) no Hotel Braston, em São Paulo. A oficina faz parte da Jornada pelo Desenvolvimento com Distribuição de Renda e Valorização do Trabalho, protagonizada pela Central Única dos Trabalhadores desde 2006, que tem levado o debate sobre a construção de um novo modelo de desenvolvimento - sustentável e inclusivo, para superar as enormes desigualdades ainda existentes - a todo o país. "Com a contribuição do conjunto de companheiros e companheiras das mais variadas regiões, e o apoio de renomados intelectuais e lideranças dos movimentos sociais, estamos construindo a nossa Plataforma da Classe Trabalhadora, que reafirma o papel do Estado no desenvolvimento nacional e a importância do aprofundamento da democracia", declarou o presidente nacional da CUT, Artur Henrique, que compartilhou com Pochmann a mesa de abertura do evento. Para Artur, a democratização das relações do trabalho é um elemento central para garantir justiça e inclusão social, já que a manutenção de padrões autoritários de comportamento, como o demonstrado pelo patronato no uso e abuso da alta rotatividade, acabam sendo extremamente daninhos para os trabalhadores. "É inadmissível que continuemos tendo, como no ano passado, 16,6 milhões de trabalhadores contratados e mais de 15 milhões sendo demitidos", ressaltou, dialogando com a necessidade da aprovação da ratificação pelo Congresso Nacional da Convenção 158 da OIT, que coíbe as demissões imotivadas. O presidente cutista também combateu os setores retrógrados e sua mídia, que atacam políticas públicas fundamentais para a melhoria das condições de vida dos brasileiros como são o salário mínimo e o programa Bolsa Família, alegando que "tem resultado baixo para muito gasto". "Atacam o Território da Cidadania, o Luz para Todos e todo e qualquer programa que beneficie os mais humildes. Há uma disputa política e ideológica na sociedade e precisamos estar cada vez mais preparados para este enfrentamento", acrescentou. Na avaliação de Artur, entre as "tarefas e desafios no curto e no longo prazo, estão a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho", principalmente em função dos inumeráveis abusos da terceirização e precarização ainda existentes em setores como o da construção civil e do comércio e serviços. Frisando a relevância da ação sindical para que haja um desdobramento positivo, o presidente do IPEA conclamou os presentes a fazerem um exercício de projeção sobre o que será o nosso país em 2030, quando teremos 207 milhões de brasileiros e se espera uma regressão na expectativa demográfica, da mesma forma que já ocorreu na metade do século 19, com o fim do tráfico negreiro. Em 2040 a projeção é de 205 milhões. Até 2030, há uma forte tendência de transformação do mundo do trabalho que redefine o próprio trabalho. "Em 1992, tínhamos 34% da população com até 15 anos; em 2008 eram 25% e em 2030 serão apenas 15%, com a idade média chegando a 45 anos e a expectativa de vida entre 90 e 100 anos. Da mesma forma, haverá uma forte queda na taxa de fecundidade que em 1992 era de 2,8 filhos por família, reduzida a 1,8 em 2008 e que será de apenas 0,9% em 2030". "Como nascerão menos pessoas do que morrerão, haverá um aumento da taxa etária mais avançada e é preciso que o sindicalismo reflita sobre isso. No século 20, o novo sindicalismo se organizou a partir de uma base familiar de dois adultos e duas crianças. Neste futuro próximo teremos famílias mais fragilizadas, com menos laços de sociabilidade e maior presença das mulheres em cargos de chefia, o que dará maior relevância às questões de gênero", analisa o professor. Enquanto atualmente a mulher entra e sai do mercado de trabalho conforme a reprodução, "o que provoca uma brutal desigualdade", com a mulher vivendo cerca de 90 anos e tendo apenas um filho, avalia, "teremos política de gênero para os homens". Isso porque o futuro da ocupação será o trabalho imaterial, com ênfase no setor de serviços, onde o conhecimento - cada vez mais apropriado pelo sexo feminino - terá importância maior. "Hoje 70% dos trabalhadores encontram-se no setor terciário; em 2030, 85% estarão nos serviços, 8 a 9% na indústria e 6 a 7% na agropecuária". Pochmann também alertou para o fato de que crescerá o trabalho imaterial, feito a partir de qualquer lugar, o que dificultará a regulação social e trabalhista, o que desde já se coloca como um desafio para a organização sindical. "Assim, como fica o acidente ocorrido fora do ambiente de trabalho, as doenças como a depressão, e outras doenças mentais, que a regulação social não reconhece como doença do trabalho? Esta é uma riqueza que está sendo apropriada, mas que os governos não tributam e que os sindicatos não disputam. Guardando-se as devidas diferenças, estamos voltando ao trabalho na sociedade agrária, onde se morava na fazenda e trabalhava na fazenda, sem regulação". O papel do estudo na sociedade do conhecimento foi reforçado pelo presidente do IPEA, frisando que "será colocado em xeque todo o sistema de educação, informação e ensino, pois hoje quem estuda são as crianças e adolescentes, já que a educação em nossa sociedade está organizada para o trabalho, não para a vida". "Conhecimento é sistematização, é analise de informações, por isso a educação deve ser um elemento intrínseco da organização sindical, da organização da sociedade, da reorganização da sociabilidade", acrescentou. Citando a formulação de Hannah Arendt, Pochmann defendeu que é chegada a hora da humanidade caminhar para se libertar do trabalho heterônimo, aquele necessário para a sobrevivência, pois já existem as condições para a sua superação. Naturalmente, ressaltou o professor, "o problema não é econômico, mas político. O Brasil é o maior exportador de alimentos, mas há gente em nosso país que morre de fome". Na sociedade agrária, 70% da vida eram gastos no trabalho pela sobrevivência, "quem organizava a vida era o sol"; na sociedade urbano-industrial, com as pessoas vivendo 60 anos em média, eram gastos 45% e na sociedade pós-industrial, o trabalho heterônimo será de apenas 20%. "Haverá uma ampliação do trabalho autonomamente dirigido pelo homem, não mais pela sobrevivência, socialmente útil, de cooperação e não de competição". Nesta nova sociedade, avalia, "o Sindicato poderá ser peça chave, sendo não somente representante do trabalho heterônimo, mas ampliando sua ação para os que hoje ainda encontram-se fora da sua representação como a criança, a mulher que trabalha em casa, o idoso, o deficiente físico e mental". Antes, lembrou, a diferença do homem para a mulher e sua inserção na divisão do trabalho encontrava-se na força física, "e hoje para que ela é necessária? Para levantar o lápis, para apertar um teclado?". Citando o revolucionário russo Vladimir Lenin, o presidente do IPEA lembrou das críticas contundentes ao corporativismo do Sindicato de Ofício que no final do século 19 acabaram agindo como uma aristocracia operária, colocando-se acima da classe, das suas lutas, interesses e compromissos. "Não podemos ficar olhando o mundo através do retrovisor, os trabalhadores são peças fundamentais na construção do amanhã, que se faz hoje", concluiu Pochmann, sob aplausos. Pochmann na Jornada pelo Desenvolvimento "Cada vez mais, o sindicalismo deve ser protagonista de futuro, construtor do amanhã" "Cada vez mais, o sindicalismo deve ser protagonista de futuro, construtor do amanhã, interferindo nas transformações do mundo do trabalho a partir do aumento da organização e da consciência da classe, para que a sociedade do conhecimento seja a da abundância e não da escassez, da cooperação e não da competição", afirmou o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), professor Márcio Pochmann, na mesa de abertura da Oficina "Mercado de Trabalho, educação, saúde e proteção social - políticas públicas para o desenvolvimento sustentável", realizada quarta-feira (14) no Hotel Braston, em São Paulo. A oficina faz parte da Jornada pelo Desenvolvimento com Distribuição de Renda e Valorização do Trabalho, protagonizada pela Central Única dos Trabalhadores desde 2006, que tem levado o debate sobre a construção de um novo modelo de desenvolvimento - sustentável e inclusivo, para superar as enormes desigualdades ainda existentes - a todo o país. "Com a contribuição do conjunto de companheiros e companheiras das mais variadas regiões, e o apoio de renomados intelectuais e lideranças dos movimentos sociais, estamos construindo a nossa Plataforma da Classe Trabalhadora, que reafirma o papel do Estado no desenvolvimento nacional e a importância do aprofundamento da democracia", declarou o presidente nacional da CUT, Artur Henrique, que compartilhou com Pochmann a mesa de abertura do evento. Para Artur, a democratização das relações do trabalho é um elemento central para garantir justiça e inclusão social, já que a manutenção de padrões autoritários de comportamento, como o demonstrado pelo patronato no uso e abuso da alta rotatividade, acabam sendo extremamente daninhos para os trabalhadores. "É inadmissível que continuemos tendo, como no ano passado, 16,6 milhões de trabalhadores contratados e mais de 15 milhões sendo demitidos", ressaltou, dialogando com a necessidade da aprovação da ratificação pelo Congresso Nacional da Convenção 158 da OIT, que coíbe as demissões imotivadas. O presidente cutista também combateu os setores retrógrados e sua mídia, que atacam políticas públicas fundamentais para a melhoria das condições de vida dos brasileiros como são o salário mínimo e o programa Bolsa Família, alegando que "tem resultado baixo para muito gasto". "Atacam o Território da Cidadania, o Luz para Todos e todo e qualquer programa que beneficie os mais humildes. Há uma disputa política e ideológica na sociedade e precisamos estar cada vez mais preparados para este enfrentamento", acrescentou. Na avaliação de Artur, entre as "tarefas e desafios no curto e no longo prazo, estão a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho", principalmente em função dos inumeráveis abusos da terceirização e precarização ainda existentes em setores como o da construção civil e do comércio e serviços. Frisando a relevância da ação sindical para que haja um desdobramento positivo, o presidente do IPEA conclamou os presentes a fazerem um exercício de projeção sobre o que será o nosso país em 2030, quando teremos 207 milhões de brasileiros e se espera uma regressão na expectativa demográfica, da mesma forma que já ocorreu na metade do século 19, com o fim do tráfico negreiro. Em 2040 a projeção é de 205 milhões. Até 2030, há uma forte tendência de transformação do mundo do trabalho que redefine o próprio trabalho. "Em 1992, tínhamos 34% da população com até 15 anos; em 2008 eram 25% e em 2030 serão apenas 15%, com a idade média chegando a 45 anos e a expectativa de vida entre 90 e 100 anos. Da mesma forma, haverá uma forte queda na taxa de fecundidade que em 1992 era de 2,8 filhos por família, reduzida a 1,8 em 2008 e que será de apenas 0,9% em 2030". "Como nascerão menos pessoas do que morrerão, haverá um aumento da taxa etária mais avançada e é preciso que o sindicalismo reflita sobre isso. No século 20, o novo sindicalismo se organizou a partir de uma base familiar de dois adultos e duas crianças. Neste futuro próximo teremos famílias mais fragilizadas, com menos laços de sociabilidade e maior presença das mulheres em cargos de chefia, o que dará maior relevância às questões de gênero", analisa o professor. Enquanto atualmente a mulher entra e sai do mercado de trabalho conforme a reprodução, "o que provoca uma brutal desigualdade", com a mulher vivendo cerca de 90 anos e tendo apenas um filho, avalia, "teremos política de gênero para os homens". Isso porque o futuro da ocupação será o trabalho imaterial, com ênfase no setor de serviços, onde o conhecimento - cada vez mais apropriado pelo sexo feminino - terá importância maior. "Hoje 70% dos trabalhadores encontram-se no setor terciário; em 2030, 85% estarão nos serviços, 8 a 9% na indústria e 6 a 7% na agropecuária". Pochmann também alertou para o fato de que crescerá o trabalho imaterial, feito a partir de qualquer lugar, o que dificultará a regulação social e trabalhista, o que desde já se coloca como um desafio para a organização sindical. "Assim, como fica o acidente ocorrido fora do ambiente de trabalho, as doenças como a depressão, e outras doenças mentais, que a regulação social não reconhece como doença do trabalho? Esta é uma riqueza que está sendo apropriada, mas que os governos não tributam e que os sindicatos não disputam. Guardando-se as devidas diferenças, estamos voltando ao trabalho na sociedade agrária, onde se morava na fazenda e trabalhava na fazenda, sem regulação". O papel do estudo na sociedade do conhecimento foi reforçado pelo presidente do IPEA, frisando que "será colocado em xeque todo o sistema de educação, informação e ensino, pois hoje quem estuda são as crianças e adolescentes, já que a educação em nossa sociedade está organizada para o trabalho, não para a vida". "Conhecimento é sistematização, é analise de informações, por isso a educação deve ser um elemento intrínseco da organização sindical, da organização da sociedade, da reorganização da sociabilidade", acrescentou. Citando a formulação de Hannah Arendt, Pochmann defendeu que é chegada a hora da humanidade caminhar para se libertar do trabalho heterônimo, aquele necessário para a sobrevivência, pois já existem as condições para a sua superação. Naturalmente, ressaltou o professor, "o problema não é econômico, mas político. O Brasil é o maior exportador de alimentos, mas há gente em nosso país que morre de fome". Na sociedade agrária, 70% da vida eram gastos no trabalho pela sobrevivência, "quem organizava a vida era o sol"; na sociedade urbano-industrial, com as pessoas vivendo 60 anos em média, eram gastos 45% e na sociedade pós-industrial, o trabalho heterônimo será de apenas 20%. "Haverá uma ampliação do trabalho autonomamente dirigido pelo homem, não mais pela sobrevivência, socialmente útil, de cooperação e não de competição". Nesta nova sociedade, avalia, "o Sindicato poderá ser peça chave, sendo não somente representante do trabalho heterônimo, mas ampliando sua ação para os que hoje ainda encontram-se fora da sua representação como a criança, a mulher que trabalha em casa, o idoso, o deficiente físico e mental". Antes, lembrou, a diferença do homem para a mulher e sua inserção na divisão do trabalho encontrava-se na força física, "e hoje para que ela é necessária? Para levantar o lápis, para apertar um teclado?". Citando o revolucionário russo Vladimir Lenin, o presidente do IPEA lembrou das críticas contundentes ao corporativismo do Sindicato de Ofício que no final do século 19 acabaram agindo como uma aristocracia operária, colocando-se acima da classe, das suas lutas, interesses e compromissos. "Não podemos ficar olhando o mundo através do retrovisor, os trabalhadores são peças fundamentais na construção do amanhã, que se faz hoje", concluiu Pochmann, sob aplausos.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Eric Hobsbawm: uma nova igualdade depois da crise

O objetivo de uma economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI. A análise é de Eric Hobsbawm. IHU - Instituto Humanitas (Unisinos) Publicamos aqui parte da conferência que o historiador inglês e membro da Academia Britânica de Ciências Eric J. Hobsbawm apresentou no primeiro dia do World Political Forum, em Bosco Marengo (Alexandria). Do Fórum deste ano, sobre o tema "O Leste: qual futuro depois do comunismo?", participam, dentre outros, Mikhail Gorbachev e Yuri Afanasiev. Segundo Hobsbawn, todos os países do Leste, assim como os do Oeste, devem sair da ortodoxia do crescimento econômico a todo custo e dar mais atenção à equidade social. Os países ex-soviéticos, afirma, ainda não superaram as dificuldades da transição para o novo sistema. O texto foi publicado no jornal La Repubblica, em 09-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o artigo. O "século breve", o XX, foi um período marcado por um conflito religioso entre ideologias laicas. Por razões mais históricas do que lógicas, ele foi dominado pela contraposição de dois modelos econômicos – e apenas dois modelos exclusivos entre si – o "Socialismo", identificado com economias de planejamento central de tipo soviético, e o "Capitalismo", que cobria todo o resto. Essa contraposição aparentemente fundamental entre um sistema que ambiciona tirar do meio do caminho as empresas privadas interessadas nos lucros (o mercado, por exemplo) e um que pretendia libertar o mercado de toda restrição oficial ou de outro tipo nunca foi realista. Todas as economias modernas devem combinar público e privado de vários modos e em vários graus, e de fato fazem isso. Ambas as tentativas de viver à altura dessa lógica totalmente binária dessas definições de "capitalismo" e "socialismo" faliram. As economias de tipo soviético e as organizações e gestões estatais sobreviveram aos anos 80. O "fundamentalismo de mercado" anglo-americano quebrou em 2008, no momento do seu apogeu. O século XXI deverá reconsiderar, portanto, os seus próprios problemas em termos muito mais realistas. Como tudo isso influi sobre países que no passado eram devotados ao modelo "socialista"? Sob o socialismo, haviam reencontrado a impossibilidade de reformar os seus sistemas administrativos de planejamento estatal, mesmo que os seus técnicos e os seus economistas estivessem plenamente conscientes das suas principais carências. Os sistemas – não competitivos em nível internacional – foram capazes de sobreviver até que pudessem continuar completamente isolados do resto da economia mundial. Esse isolamento, porém, não pôde ser mantido no tempo, e, quando o socialismo foi abandonado – seja em seguida à queda dos regimes políticos como na Europa, seja pelo próprio regime, como na China ou no Vietnã – estes, sem nenhum pré-aviso, se encontraram imersos naquela que para muitos pareceu ser a única alternativa disponível: o capitalismo globalizado, na sua forma então predominante de capitalismo de livre mercado. As consequências diretas na Europa foram catastróficas. Os países da ex-União Soviética ainda não superaram as suas repercussões. A China, para sua sorte, escolheu um modelo capitalista diferente do neoliberalismo anglo-americano, preferindo o modelo muito mais dirigista das "economias tigres" ou de assalto da Ásia oriental, mas abriu caminho para o seu "gigantesco salto econômico para frente" com muito pouca preocupação e consideração pelas implicações sociais e humanas. Esse período está quase às nossas costas, assim como o predomínio global do liberalismo econômico extremo de matriz anglo-americana, mesmo que não saibamos ainda quais mudanças a crise econômica mundial em curso implicará – a mais grave desde os anos 30 –, quando os impressionantes acontecimentos dos últimos dois anos conseguirão se superar. Uma coisa, porém, é desde já muito clara: está em curso uma alternância de enormes proporções das velhas economias do Atlântico Norte ao Sul do planeta e principalmente à Ásia oriental. Nessas circunstâncias, os ex-Estados soviéticos (incluindo aqueles ainda governados por partidos comunistas) estão tendo que enfrentar problemas e perspectivas muito diferentes. Excluindo de partida as divergências de alinhamento político, direi apenas que a maior parte deles continua relativamente frágil. Na Europa, alguns estão assimilando o modelo social-capitalista da Europa ocidental, mesmo que tenham um lucro médio per capita consideravelmente inferior. Na União Europeia, também é provável prever o aparecimento de uma dupla economia. A Rússia, recuperada em certa medida da catástrofe dos anos 90, está quase reduzida a um país exportador, poderoso mas vulnerável, de produtos primários e de energia e foi até agora incapaz de reconstruir uma base econômica mais bem balanceada. As reações contra os excessos da era neoliberal levaram a um retorno, parcial, a formas de capitalismo estatal acompanhadas por uma espécie de regressão a alguns aspectos da herança soviética. Claramente, a simples "imitação do Ocidente" deixou de ser uma opção possível. Esse fenômeno ainda é mais evidente na China, que desenvolveu com considerável sucesso um capitalismo pós-comunista próprio, a tal ponto que, no futuro, pode também ocorrer que os historiadores possam ver nesse país o verdadeiro salvador da economia capitalista mundial na crise na qual nos encontramos atualmente. Em síntese, não é mais possível acreditar em uma única forma global de capitalismo ou de pós-capitalismo. Em todo caso, delinear a economia do amanhã é talvez a parte menos relevante das nossas preocupações futuras. A diferença crucial entre os sistemas econômicos não reside na sua estrutura, mas sim na suas prioridades sociais e morais, e estas deveriam portanto ser o argumento principal do nosso debate. Permitam-me, por isso, a esse ilustrar dois de seus aspectos de fundamental importância a esse propósito. O primeiro é que o fim do Comunismo comportou o desaparecimento repentino de valores, hábitos e práticas sociais que haviam marcado a vida de gerações inteiras, não apenas as dos regimes comunistas em estrito senso, mas também as do passado pré-comunista que, sob esses regimes, haviam em boa parte se protegido. Devemos reconhecer quanto foram profundos e graves o choque e a desgraça em termos humanos que foram verificados em consequência desse brusco e inesperado terremoto social. Inevitavelmente, serão necessárias diversas décadas antes de que as sociedades pós-comunistas encontrem uma estabilidade no seu "modus vivendi" na nova era, e algumas consequências dessa desagregação social, da corrupção e da criminalidade institucionalizadas poderiam exigir ainda muito mais tempo para serem combatidas. O segundo aspecto é que tanto a política ocidental do neoliberalismo, quanto as políticas pós-comunistas que ela inspirou subordinaram propositalmente o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB, o Produto Interno Bruto: o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inigualitário. Assim fazendo, eles minaram – e nos ex-países comunistas até destruíram – os sistemas da assistência social, do bem-estar, dos valores e das finalidades dos serviços públicos. Tudo isso não constitui uma premissa da qual partir, seja para o "capitalismo europeu de rosto humano" das décadas pós-1945, seja para satisfatórios sistemas mistos pós-comunistas. O objetivo de uma economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sapatos ou sandálias

Emir Sader "Melhor um mafioso de sapato que um ignorante de sandália." O comentário preconceituoso foi feito por uma mulher branca, no vôo de Santa Cruz de la Sierra a Cochabamba. Dá uma idéia do sentimento dessa minoria branca, que sempre governou a Bolívia, durante séculos, ao sentir que o país lhes tinha sido expropriado pelas mãos da grande maioria de povos indígenas - 64% da população se reconhecem como de origem indígena - aymaras, quéchuas, guaranis ou de outras nacionalidades -, mas nunca tinham governado o país. Na época da campanha eleitoral havia uma charge em um jornal boliviano, em que quatro mulheres brancas jogavam baralho, quando uma delas pergunta: - Mas um índio pode ser presidente? Ao que respondeu uma outra: - Sim, da Índia. A forma usual de se dirigir a Evo Morales, presidente da República, é chamá-lo de "esse índio de merda". No ano passado, na praça central de Cochabamba, estudantes brancos submeteram índios e índias a vexames públicos, violentamente. O racismo da direita, da imprensa e dos governos da região oriental é extremado. Esse sentimento se aguçou quando as pesquisas eleitorais confirmam o que as eleições do ano passado já haviam revelado: o governo de Evo Morales goza de ampla maioria no país e desta vez deve conseguir não apenas a reeleição e repetir a maioria na Câmara de Deputados, mas conquistar a maioria do Senado, talvez até com 2/3 dos parlamentares. A oposição, derrotada politicamente, concorre com vários candidatos, sempre muito atrás - mesmo somados - da votação prevista para Evo. Um deles, candidato também nas eleições passadas, Samuel Doria, é quem detêm a marca da Burger King na Bolívia. Seu lema, pintado nas paredes daqui de Cochabamba: "Fazer Bolívia voltar a trabalhar". Expressa outro preconceito: o de que a região ocidental do país, em que está La Paz e os estados de maioria esmagadora de indígenas, vivem do Estado, de políticas sociais, de subsídios, etc., enquanto o dinamismo e o trabalho ficariam por conta da região majoritariamente branca - a região oriental. Depois de tentativas de deslegitimação do governo, promovendo projetos autonômicos nas províncias, de forma violenta, a direita se viu derrotada na consulta sobre confirmação de mandatos em agosto do ano passado. Diante dos resultados, promoveu atos violentos de ocupação de prédios do governo federal, agressão a funcionários públicos, até que um dos governadores da região oriental, do estado de Pando -, reprimiu uma mobilização de camponeses, matando a vários deles. Isso por si só já gerou seu isolamento, mas o governo passou a atuar, com a prisão do governador e uma grande mobilização de 100 mil pessoas dirigidas por Evo Morales em La Paz. A oposição passou à defensiva, derrotada politicamente. Um dos reflexos dessa derrota é não ter conseguido se unificar e lançar vários candidatos. A vitória de Evo Morales, com maioria - com a possibilidade de chegar a 2/3 no Senado - permitirá que todo o processo, recém iniciado, de refundação do Estado boliviano, com todo o novo embasamento legal que isso requer, poderá ser feito conforme as orientações do governo. A direita ainda não está derrotada economicamente, dispõe de grande poder econômico - ainda que enfraquecido - e do poder midiático, graças ao monopólio que exerce, tal como acontece nos outros países do continente. Mas, a três anos e meio da sua primeira eleição, o governo boliviano caminha, seguro, para a sua consolidação. Elabora neste momento uma lei de gestão pública do novo Estado multinacional e autonômico, avançando no projeto de refundação do Estado boliviano. O ex-presidente Sanchez de Losada, refugiado nos EUA, com pedido de extradição pelo governo boliviano para responder na Justiça pelas dezenas de mortes de responsabilidade do seu governo, quando tentava evitar sua queda, representa bem o "mafioso com sapato". Evo, de sandálias, a sabedoria indígena, camponesa, popular, que para os preconceitos racistas aparece como "ignorância".

domingo, 11 de outubro de 2009

Quem paga, quem recebe ?

Para um governo que pretende combater as injustiças sociais – de que ainda somos os campeões mundiais, apesar das significativas melhorias no governo atual -, a reforma tributária é questão central. O governo não é um produtor de riquezas. Para dispor de recursos para políticas sociais, para induzir o crescimento econômico, para qualificar os serviços do Estado, depende da arrecadação de impostos. Quando perde o debate sobre a reforma fiscal – ou não dá o debate sobre ela –, um governo fica acuado para desenvolver políticas que diminuam os efeitos concentradores de renda e expropriadores de direitos do mercado. No entanto, a esquerda não assume a importância do tema e se deixa levar, via de regra, por armadilhas que se tornaram elementos consensuais na opinião pública e que inviabilizam o papel histórico do Estado de transferir recursos dos setores mais ricos aos mais pobres, minorando as desigualdades sociais. A primeira armadilha é a que propaga que quanto menos imposto o Estado cobra, melhor para cada uma das pessoas. Acena-se com a proporção dos impostos no PIB, alerta-se contra o papel expropriador do Estado, alega-se que se está tirando não sei quantos dias ao mês do cidadão para fomentar gastos – implícita ou explicitamente – caracterizados como desperdícios. Uma vez o Estado caracterizado como problema e não como solução – visão inerente ao neoliberalismo, que vem de Reagan e Thatcher, para ser incorporada por quase todas as forças políticas, ansiosas por ganhar o apoio, especialmente da classe média, que se sente vítima das tributações -, abre-se o campo para a linha de defesa contra políticas tributárias. O Brasil, com o caudal de desigualdades acumuladas, possui um sistema tributário regressivo que, em lugar de redistribuir renda, contribui para sua concentração. As grandes empresas, mais particularmente até as do sistema bancário e financeiro, mas todas elas em seu conjunto, pagam pouco ou quase nada de impostos. (A mais bem remunera profissão no campo do direito é o direito tributário, que se resume nas artimanhas para burlar o fisco.) É a cidadania em geral que paga impostos e fornece ao Estado grande parte da sua arrecadação, descaracterizando já a idéia de que a tributação devesse servir para transferir renda de quem tem mais para quem tem menos. Por outro lado, a maior parte da tributação vem dos impostos indiretos e não dos diretos. Isto é, ao tributar igualmente a todos pelo consumo, por exemplo, da cerveja, o Estado está tornando iguais os que são sumamente desiguais, fazendo com que todos paguem os mesmos impostos no consumo, independentemente do seu nível de renda. Os impostos à riqueza, incluído aquele à herança – são irrisórios, enquanto os que atingem a massa da população tendem a ser implacáveis. Além disso, tende-se a aceitar que seria difícil ou quase impossível promover a transparência do orçamento – mecanismo pelo qual ficaria claro que os pobres e o conjunto da cidadania são fonte de transferência de recursos para que o Estado pague suas dívidas ao capital financeiro, através do superávit fiscal -, alegando-se que os orçamentos seriam fictícios, porque só sua execução final permitiria compreende realmente seus mecanismos e outros argumentos supostamente técnicos, que pretendem tirar do olhar da cidadania e dos movimentos populares organizados, a possibilidade de controle social sobre o Estado. Mas o argumento de fundo, que permite toda essa injustiça fiscal é a criminalização do Estado, que só serviria para tungar os cidadãos, não fornecendo serviços de qualidade como contrapartida. Tudo o que se deve esperar do Estado viria recortar direitos e renda dos cidadãos. O candidato que promete baixar os impostos, tende a se tornar líder das pesquisas eleitorais. Por sua vez, as isenções fiscais fazem com que o Estado arrecada metade do que deveria. Todos querem pagar menos, não importa que tipo de dessolidarizaçã o sociais implementa, que tipos de direitos estão sento recortados com isenções e sonegações fiscais. A Lei Rouanet é dos tantos exemplos disso. Ao invés de pagar impostos e usar parte dos seus lucros para o trabalho de marketing das empresas, se deixa de fazer o primeiro, usando esses recursos para promover o nome da empresa. Enquanto isso o Ministério da Cultura luta, até aqui infrutiferamente, para que seu orçamento chegue a 1%, para dispor de mais recursos para promover políticas publicas de cultura. As empresas, por sua vez, tendem a financiar eventos culturais de duvidoso nível artístico – tantas vezes comedinhas erótico-sentimentais com um casalzinho que faz simultaneamente novelas na televisão -, em detrimento do apoio a outros, de qualidade cultural, que o governo poderia e deveria fomentar. Tudo isso alimenta a crise fiscal do Estado, que fica dependendo do ritmo de crescimento econômico e dos impostos, em geral pagos pelos que vivem da renda do trabalho – e não dos que vivem dos lucros do capital – para poder dispor de recursos que alimentem sua função essencial de promover a justiça social. Discutir reforma tributária no Brasil incita os grandes empresários a esfregar as mãos de excitação, achando que vão pagar ainda menos impostos. O governo, na sua era Palocci, perdeu a oportunidade de fazer a reforma fiscal socialmente justa que o Brasil precisa, aprovando um engendro entre tributação nacional, estadual e municipal, que nada muda no quadro de injustiça no país e de dificuldades financeiras dos governos para atacar a desigualdade social – principal lacra que ainda se abate sobre nós. Devemos lutar para que o tema da reforma tributária esteja no centro dos debates da campanha presidencial, intrinsecamente associado ao do papel do Estado e ao das políticas sociais. Se não os ministros da economia tenderão a brecar as políticas sociais, brandindo o argumento de que "seria justo, mas não há recursos". A solução desse nó deveria vir das políticas de orçamento participativo, que permitem à cidadania perceber claramente quem paga e quem recebe recursos do Estado, que função de repasse, de que setor social para que outro, está desempenhando o Estado. Se está minorando as desigualdades sociais, fazendo com que quem tem mais pague mais, para diminuir as carências da massa da população, ou se está se somando à financeirizaçã o da economia, transferindo, via tributação, recursos do mundo do trabalho para o mundo da especulação. Por Emir Sader.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O véu, a identidade e o discurso

Isabelle Somma Chador, hijab, niqab, burca, jilbab . São vários os modelos de vestimentas que encobrem as formas do corpo feminino, os cabelos e até mesmo o rosto das muçulmanas. E também são inúmeras as restrições que as usuárias têm enfrentado. Na França, usar algo do gênero em escolas públicas e até na rua vem sendo alvo da sanha governamental. Na Turquia, o mesmo princípio, o da laicidade do estado, foi mencionado para proibir o uso de véus nas universidades. Nos Estados Unidos, muçulmanas devotas têm problemas até para entrar em bancos. Talvez seja hora de entendermos um pouco mais as motivações das usuárias. A época e o local de origem do costume de cobrir os cabelos e o corpo são incertos. Cobrir o rosto com um véu era comum na Baixa Idade Média entre as bizantinas orientais (FREI BETTO, 2000; p. 221), mas também era uma prática comum na Península Arábica pré-islâmica (AHMED, 1992; p. 5). Sabe-se com certeza, contudo, que o costume se popularizou entre os muçulmanos muitas décadas depois da morte do profeta Muhammad (?-632), durante o califado abássida, em meados do século VIII (KAMEL, 2007; p. 152). A própria regulamentação da vestimenta entre os muçulmanos é controversa. O Alcorão, livro sagrado que é reconhecido por todas as correntes islâmicas , não é preciso sobre o assunto. Nele, não há nenhuma indicação em relação à prática feminina de cobrir a cabeça, apenas a recomendação de que os fiéis se vistam com modéstia. “Specific attire for women is not stipulated anywhere in the Quran, which also emphasizes modesty for men...” (ESPOSITO, 2002, p. 95). O uso de vestimentas especiais entre as muçulmanas baseia-se, de acordo com Frei Betto e Esposito, no versículo 31 da sura 24 do Alcorão (sem data, p. 186): E dize às crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não exibam de seus adornos além do que aparece necessariamente. E que abaixem seu véu sobre os seios e não exibam seus adornos senão aos seus maridos ou pais ou sogros ou filhos ou enteados ou irmãos ou sobrinhos ou damas de companhia ou servas ou criados de apelo sexual ou às crianças que nada sabem da nudez da mulher. A tradição islâmica afirma que tudo, exceto mãos e pés – além de muitos incluírem rosto – deve ser coberto. A interpretação parece uma contradição, pois se o corpo inteiro precisa ser coberto, não haveria sentido a especificação no livro sagrado sobre cobrir os seios separadamente. Outro verso do Alcorão que aborda o tema designa que as mulheres devem usar um manto para não serem reconhecidas e incomodadas. Ambos são as únicas indicações de vestimenta para mulheres no Alcorão (KEDDIE, 2007; p. 206). Provavelmente, a prescrição tradicional está ligada ao preceito da segregação sócio-religiosa, fundada sobre a diferença de gênero. Ela se relaciona com uma distinção entre o domínio público e a esfera privada, que tem origem nos mecanismos sociais de organização dos papéis de ambos os sexos criados e consolidados na sociedade patriarcal pré-islâmica e que “resistiram com o passar do tempo, até os nossos dias, quando as conflitividades entre as diversas identidades de gênero explodiram e ganharam visibilidade na sociedade” (PACE, 2005; pp. 151-2). A socióloga marroquina Fátima Mernissi tem uma tese bastante controversa a respeito do uso religioso da segregação dos sexos. Ela afirma que, ao contrário da cultura ocidental, que se baseia na crença de que as mulheres são inferiores biologicamente, no Islã é o contrário. Na verdade, o sistema de crença é baseado na suposição de que as mulheres são seres poderosos e perigosos e por isso existem instrumentos para sua contenção. “All sexual institutions (poligamy, repudiation, sexual segregation, etc.) can be perceived as a strategy for containing their power” (MERNISSI, 1987; p. 19). Portanto, o ato de cobrir a cabeça das mulheres seria uma forma de proteger os homens, e não o contrário. Nos últimos anos, essas marcas de segregação e recato islâmico têm sido vistas cada vez mais freqüentemente em reportagens jornalísticas que tratam dos países islâmicos e daqueles onde há grandes comunidades de fiéis da religião. Esse aumento da cobertura sobre o assunto se deve, provavelmente, a duas razões primordiais. A primeira é um interesse despertado pelos atentados de 11 de setembro de 2001 em relação ao mundo islâmico, com grande ênfase na situação das muçulmanas em geral. E, em segundo, pela disseminação da vestimenta islâmica entre as muçulmanas de todo o planeta, principalmente nos centros urbanos do mundo. Clifford Geertz (2001) já apontava, em uma conferência realizada em 1996, que a adesão a essas vestimentas se tornava uma tendência crescente que faria parte de uma “reconfiguração religiosa da política do poder”. Esse movimento, pós-queda do Muro de Berlim, teria trazido à tona formas mais particulares e particularistas de auto-representação coletiva (GEERTZ, 2001; p. 157). O antropólogo norte-americano cita especificamente o caso de jovens javanesas, urbanizadas e instruídas, que optaram por adotar uma vestimenta tradicional comum no Oriente Médio (e nem tanto no Sudeste Asiático onde vivem), o jilbab, antes associada a mulheres mais velhas e devotas. Baseado nas pesquisas de Suzanne Brenner com vinte mulheres entrevistadas na Indonésia, Geertz explica que este não é um movimento simples e único (op. cit.; p.164): O movimento das identidades religiosas e das questões religiosas em direção do centro da vida social, política e até econômica talvez esteja disseminado e crescendo, tanto em escala quanto em importância. Mas não é um fenômeno unitário, a ser uniformemente descrito. Existem tantas variedades de “experiência religiosa”, ou, se quisermos, expressões da experiência religiosa, quantas sempre existiram. Ou talvez mais. A própria pesquisadora aponta que esse movimento demonstra a ocorrência de transformações sociais e religiosas mais profundas. Segundo Brenner, para algumas muçulmanas javanesas, a adoção do uso do jilbab é tanto uma reconstrução do “self” como também a reconstrução da sociedade através da autodisciplina coletiva e individual. A própria opção por usar a vestimenta se traveste de uma característica moderna. A experiência da adoção de roupas que marcam a opção ortodoxa daquela que a adotou estaria, portanto, produzindo um senso de identidade, poder e sentido às javanesas entrevistadas (BRENNER, 1996; p. 690). As três palavras são citadas por Geertz e apontadas como elementos-chave para o entendimento das novas tonalidades da devoção em nossa época. O autor cita uma série de fatos em que política e religião se confundem para concluir que ignorar essa relação seria “passar por cima de uma multiplicidade de coisas que vêm acontecendo nos corações e mentes dos devotos de hoje” (GEERTZ, 2001; p. 152). O exemplo de Geertz é apontado pelo historiador libanês Albert Hourani como um movimento que teve início no final dos anos 70, início dos 80, no mundo árabe. Mesmo nas ruas, locais de trabalho, e, especialmente, em universidades e escolas, um crescente número de mulheres passou a cobrir os cabelos, e algumas, o rosto, segregando-se social e profissionalmente dos homens. “Pelo que poderia parecer um paradoxo, isso era mais um sinal de afirmação de sua identidade que do poder do homem.” Grande parte daquelas que optou pelo véu não vinha de famílias que praticavam a segregação de sexos, mas adotaram o costume como um ato de escolha deliberada, “resultante de uma certa visão do que deveria ser uma sociedade islâmica, e em certa medida influenciada pela revolução iraniana” (HOURANI, 1994; p. 439). A retomada do uso do véu como marca de um movimento devocional crescente também é apontado por Lila Abu-Lughod, que realizou trabalho de campo no Egito. De acordo com a pesquisadora da Universidade de Columbia, o aumento do uso atual do véu nos centros urbanos tem sido observado em várias partes do mundo islâmico. Esta tendência estaria associada a um movimento religioso/político, que ela chama de “islamismo” . O uso do véu se basearia em ideais de modéstia, mas estão explicitamente ligados ao comprometimento com outros ideais religiosos e à identidade muçulmana. Seguindo essa mesma tendência, os homens que querem demonstrar sua adesão ao movimento também adotam uma vestimenta diferenciada: usam roupas brancas e um gorro na cabeça, além de barbas longas (ABU-LUGHOD, 1999; pp. xix-xx). Na Europa, a mesma tendência tem se verificado e vem suscitando polêmica desde o final da década de 80, quando meninas que usavam o hijab (véu que cobre os cabelos) passaram a ser barradas nas escolas públicas da França, sob alegação de que elas feriam a laicidade do sistema educacional. Caitlin Killian (2003) pesquisou a opinião de muçulmanas originárias do Norte da África e que vivem na França sobre a proibição da peça pelo governo do país. A pesquisadora aponta que características como idade e grau de educação influenciam seus discursos sobre o uso do véu como um contestado símbolo de cultura, religião e gênero. Entre as que aprovam o uso, muitas usaram em seu favor argumentos como respeito a direitos e a liberdade individual daquelas que optam por aderir ao véu. Portanto, elas veriam a opção do uso do véu como coerente com um discurso progressista. Françoise Gaspard e Farhad Khosrokhavar (1995) entrevistaram meninas que foram proibidas de entrar nas escolas francesas de véu. Segundo as autoras, a maioria das adolescentes e pré-adolescentes usava o véu por pressão familiar. Por outro lado, as mais velhas, entre 18 e 22 anos, tendiam a adotar o véu por convicção religiosa ou como um símbolo de diferença e orgulho de sua identidade étnica. Esse dado vai de encontro com a pesquisa realizada pelo jornal Le Monde em 1989 e que corrobora a idéia de que uma geração de jovens que saíram da adolescência tende a ser mais flexível com a idéia do véu. As entrevistadas mais velhas tendiam a condenar mais o uso do véu do que as mais jovens: 67% contra 44%, respectivamente (KILLIAN, 2003; p. 572-3). Os dados parecem indicar que a opção pelo uso do véu é mais comum entre as pós-adolescentes. É interessante notar que as meninas entrevistadas por Gaspard e Khosrokhavar, que insistiram em usar o véu nas escolas francesas mesmo sendo proibidas por lei, rejeitam o que elas enxergam como uma tentativa de desvalorização da cultura de seus pais e uma ênfase na assimilação. Por outro lado, aceitam integrar-se por meio da escolarização e da entrada no mercado de trabalho e desejam ser reconhecidas como francesas e muçulmanas (GASPARD e KHOSROKHAVAR, 1995). Enquanto, por um lado, tal atitude parece reforçar uma visão tradicional do lugar das mulheres na sociedade (HOURANI, 1994; p. 439), o paradoxo (de mulheres educadas e integrantes do mercado de trabalho) pode ser um “feminismo ao reverso” com conotações políticas e morais. Ou melhor, o entrelaçamento das referências seculares e sagradas representadas pela adoção do uso do véu podem ser vistos como uma reação ao feminismo secular ocidental e como parte de uma busca por uma forma islâmica de protesto contra o poder masculino (WATSON, 1994; p.152). O fato é que no Brasil temos uma situação que ainda não se mostra clara devido à falta de pesquisas a esse respeito. Fatores como o número menor de imigrantes e descendentes, a distância dos países de origem, e a tradição de recebimento de correntes migratórias fazem com que o caso brasileiro seja bastante específico. No país, até o número de muçulmanos é incerto . Sabe-se apenas que grande parte deles é formada por imigrantes do Líbano e da Síria e seus descendentes . Além da colônia árabe-muçulmana, o país possui um contingente de convertidos. Segundo o sheik Jihad Hassan Hammadeh, um dos líderes da comunidade no Brasil, a maioria deles é do sexo feminino: de cada dez conversões, sete são de mulheres (SOMMA, 2007: p. 69). Há indícios de que no Brasil, a adesão ao uso do véu se relaciona mais com uma construção identitária do que com um apelo político, como ocorre no Egito e na França. Em dissertação de mestrado que trata do uso do véu em Juiz de Fora (MG), Fawzia Cunha demonstra que a maior parte das muçulmanas que aderiu ao véu, entrevistadas em sua pesquisa, tem o segundo grau completo e trabalha fora de casa. A autora conclui que o véu em Juiz de Fora não vem sendo utilizado como instrumento de luta política, apesar de muitas delas terem optado pelo uso após os atentados de 11 de setembro de 2001. Mas, como uma afirmação de identidade religiosa e pessoal (CUNHA, 2006; p. 125). É interessante notar que entre as entrevistadas de Cunha e também de Ferreira (2001), autora de dissertação sobre imagens de muçulmanas, há muitas que optaram pelo véu apesar de suas mães nunca terem usado. Será que após 11 de setembro, e a decorrente atenção dispensada pela imprensa em relação aos seus desdobramentos, não teriam contribuído para que houvesse algum outro tipo de engajamento, como o de cunho político ? O próprio uso do véu concede algum status dentro do grupo. Segundo Ferreira, após cobrir o cabelo, uma de suas entrevistadas, Magda Latif passou a ocupar um outro estatuto dentro de seu grupo: “respeitada por todos, pela inteligência e capacidade de articular e passar adiante os ensinamentos do islamismo”. A autora afirma ainda que Magda se tornou um expoente do grupo, pois passou a dar entrevistas para revistas e programas de TV (FERREIRA, 2001; pp. 59-60). Contudo, a notoriedade explica mais a manutenção do véu do que a opção por seu uso. O véu não ajudaria sua portadora a legitimar seu proselitismo e, por que não, seu papel de porta-voz da comunidade? Provavelmente as entrevistas de Magda a veículos de imprensa aumentaram após 11 de setembro de 2001. A vestimenta islâmica feminina provoca fascínio, como prova a grande quantidade de reportagens sobre o assunto. A imagem de muçulmanas cobertas, seja qual for o tipo de vestimenta, serve para ilustrar reportagens de diferentes assuntos relacionados ao mundo islâmico, de guerras a turismo, mesmo antes dos atentados de 2001. Mas Lila Abu-Lughod enfatiza que a mobilização da mídia e de grupos feministas nos Estados Unidos e na Europa se dá mais facilmente quando são homens muçulmanos oprimindo mulheres muçulmanas: “women of cover for whom they can feel sorry and in relation to whom they can feel smugly superior” . A mesma atenção não é dada às mulheres palestinas, por exemplo, que sofrem privações diárias (ABU-LUGHOD, 2002; p. 787), em conseqüência de uma ocupação de não-muçulmanos. A questão da opressão das mulheres muçulmanas por homens muçulmanos, a violência praticada pelos “outros”, é o que parece atrair a atenção da imprensa. Outra importante questão é que a ausência de voz das mulheres muçulmanas para falar sobre elas mesmas nos meios de comunicação. Em pesquisa realizada em minha dissertação de mestrado, constatei que muito da condição das muçulmanas afegãs foi evocado, principalmente o uso da burca . Reportagens que passeavam em campos de refugiados com mulheres cobertas foram escritas, com as devidas descrições e fotografias das vestimentas. Mas suas vozes nunca eram apresentadas (CASTRO, 2007; p. 77). Esse fato parece confirmar a idéia apontada por Ayotte e Husain (2005, p. 115) de que sempre há um “ventríloquo” (texto narrativo do jornalista) falando por cima das afegãs ou por elas. A opressão por meio do silenciamento das muçulmanas se mostrou uma prática jornalística comum nos jornais pesquisados (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) em relação às afegãs. Mas isso parece ocorrer também em outros veículos e em relação às mulheres árabes. A pesquisadora Linda Steet (2000) analisou todas as reportagens sobre o mundo árabe, essencialmente muçulmano, em edições da revista National Geographic entre 1888, data que foi publicada pela primeira vez, e 1988, quando completou 100 anos. Entre as principais conclusões que chegou, está a de que “a mulher oprimida” foi tema recorrente em um século de reportagens da revista. A vestimenta islâmica destacou-se nessa cobertura por supostamente demonstrar uma submissão feminina. Ao mesmo tempo em que a imprensa constrói o retrato de que as mulheres muçulmanas são indefesas – seguindo o discurso hegemônico –, a corrente contrária, conhecida como “islã fundamentalista”, mas que prefiro chamar de ativista, também utiliza o discurso da opressão para impor seu ponto de vista. “Still, Muslim women are feeling like pawns in a political game: jihadists portray them as ignorant lambs who need to be protected from outside forces, while the United States considers them helpless victims of a backward society to be saved through military intervention” (ALI, 2005) . A manipulação da imagem das muçulmanas de véu não estaria escondendo suas principais motivações, conflitos e, principalmente, suas vozes sobre sua própria condição? Talvez este discurso faça parte do que Omar Ribeiro Thomaz (2001) chama de “ansiedades” de nossos Estados nacionais. Esse discurso, legitimado pela imprensa, muitas vezes deixa de lado as verdadeiras necessidades e anseios das populações enfocadas. Quem melhor pode falar sobre o uso da vestimenta religiosa: um Estado ou as próprias usuárias? Bibliografia: ABU-LUGHOD, Lila. Veiled Sentiments: Honour and Poetry in a Bedouin Society. Berkeley: University of California Press, 1999. ___. Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological Reflections on Cultural Relativism and Its Others. In: American Anthropologist, 104, n. 3, 2002, pp. 783–790. AHMED, Leila. Women and Gender in Islam. New Haven: Yale University Press, 1992. ALCORÃO Tradução de Mansur Challita. Rio de Janeiro: Associação Cultural Internacional Gibran, (sem data). ALI, Lorraine. Reform: Not Ignorant, Not Helpless. In: Newsweek, Dec, 12, U.S. Edition, 2005, pp. 33. http://www.msnbc.msn.com/id/51394 AYOTTE, Kevin e HUSAIN, Mary E. Securing Afghan Women: Neocolonialism, Epistemic Violence, and the Rhetoric of the Veil. In: National Women’s Study Association Journal, Indiana University Press, vol. 17, no 3, Fall, 2005, pp. 112-33. BRENNER, Suzanne. 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In: AHMED, Akbar and DONNAN, Hastings (ed.) Islam, globalization and postmodernity. London: Routledge, 1994, pp. 141-159. Isabelle Somma , é jornalista e doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo
“A Teologia da Libertação: Leonardo Boff e Frei Betto” Por Michel Löwy¹. Os cristãos comprometidos socialmente são um dos componentes mais ativos e importantes do movimento altermundista; particularmente, porém não somente na América Latina e especialmente no Brasil, país que acolheu as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial (FSM). Um dos iniciadores do FSM, Chico Whitaker, membro da “Comissão Justiça e Paz” da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pertence a esta esfera de influência, o mesmo que o sacerdote belga François Houtart, amigo e professor de Camilo Torres, promotor da revista Alternatives Sud, fundador do “Centro Tricontinental” (CETRI) e uma das figuras intelectuais mais influentes do Fórum. Podemos datar o nascimento dessa corrente, que poderíamos denominar como “cristianismo da libertação” no começo dos anos 60, quando a Juventude Universitária Católica brasileira (JUC), alimentada pela cultura católica francesa progressista (Emmanuel Mounier e a revista Esprit, o padre Lebret e o movimento “Economia y Humanismo”, o Karl Marx do jesuíta J.Y. Calvez), formula por primeira vez, em nome do cristianismo, uma proposta radical de transformação social. Esse movimento se estende depois a outros países do continente e encontra, a partir dos anos 70, uma expressão cultural, política e espiritual na “Teologia da Libertação”. Os dois principias teólogos da libertação brasileiros, Leonardo Boff e Frei Betto, estão, portanto, entre os precursores e inspiradores do altermundismo; com seus escritos e suas palavras participam ativamente nas mobilizações do “movimento dos movimentos” e nos encontros do Fórum Social Mundial. Se sua influencia é muito significativa no Brasil, onde muitos militantes dos movimentos sociais, tais como sindicatos, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e movimentos de mulheres provêm de comunidades eclesiais de base (CEBs) conhecidas na Teologia da Libertação, seus escritos também são muito conhecidos entre os cristãos de outros países, tanto da América Latina quando do resto do mundo. Se houvesse que resumir a idéia central da Teologia da Libertação em uma só frase, seria “opção preferencial pelos pobres”. Qual é a novidade? Por ventura, a Igreja não esteve sempre, caritativamente, atenta ao sofrimento dos pobres? A diferença -capital- é que o cristianismo da libertação já não considera os pobres como simples objetos de ajuda, compaixão ou caridade, mas como protagonistas de sua própria história, artífices de sua própria libertação. O papel dos cristãos comprometidos socialmente é participar na “longa marcha” dos pobres rumo à “terra prometida” -a liberdade-, contribuindo para sua organização e emancipação sociais. O conceito de “pobre” tem, obviamente, um profundo alcance religioso no cristianismo; porém, corresponde também a uma realidade social essencial no Brasil e na América Latina: a existência de uma imensa massa de despossuídos, tanto nas cidades quanto no campo, que não são todos proletários ou trabalhadores. Alguns sindicalistas cristãos latino-americanos falam de “pobretariado” para descrever essa classe de deserdados que não somente são vítimas da exploração, mas, sobretudo, são vítimas da exclusão social pura e simples. O processo de radicalização das culturas católicas do Brasil e América Latina que desembocou na criação da Teologia da Libertação não vai desde a cúpula da Igreja para irrigar sua base, nem a base popular vai à cúpula (duas versões que se encontram nos discursos dos sociólogos ou historiadores do fenômeno); mas da periferia rumo ao centro. As categorias ou setores sociais do âmbito religioso que serão o motor da renovação são todos, de alguma forma, marginais ou periféricos com relação à instituição: movimentos, leigos da Igreja e seus capelães; expertos leigos, sacerdotes estrangeiros, ordens religiosas. Em alguns casos, o movimento alcança o “centro” e consegue influir nas Conferências Episcopais (particularmente no Brasil), em outros casos fica bloqueado nas “margens” da instituição. A pesar de que existem divergências significativas entre os teólogos da libertação, na maioria de seus escritos encontramos repetidos os temas fundamentais que constituem uma saída radical da doutrina tradicional e estabelecida das Igrejas Católica e Protestante: -Uma implacável acusação moral e social contra o capitalismo como sistema injusto e iníquo, como forma de pecado estrutural. -O uso do instrumento marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes. -A opção preferencial a favor dos pobres e a solidariedade com sua luta de emancipação social. -O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres como a nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista. -A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: O consumismo, a riqueza, o poder, a segurança nacional, o Estado, os exércitos; em poucas palavras, “a civilização cristã ocidental”. Examinemos mais de perto os escritos de Leonardo Boff e de Frei Betto, cujas idéias contribuíram, sem dúvida, à formação da cultura político-religiosa do componente cristão do altermundismo. O livro de Leonardo Boff -na época, membro da ordem franciscana,- Jesus Cristo libertador, (Petrópolis, Vozes, 1971), pode ser considerado como a primeira obra da Teologia da Libertação no Brasil. Essencialmente, trata-se de uma obra de exegese bíblica; porém um dos capítulos, possivelmente o mais inovador, intitulado “Cristologia desde América Latina”, expressa o desejo de que a Igreja possa “participar de maneira crítica no arrranque global de libertação que a sociedade sul-americana conhece hoje”. Segundo Boff, a hermenêutica bíblica de seu livro está inspirada pela realidade latino-americana, o que dá como resultado “a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiástico, do utópico sobre o efetivo, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o pessoal e da ortopráxis sobre a ortodoxia”; aqui se anunciam alguns dos temas fundamentais da Teologia da Libertação [1]. Personagem carismático, com uma cultura e uma criatividade enormes, ao mesmo tempo místico franciscano e combatente social, Boff converteu-se no principal representante brasileiro dessa nova corrente teológica. Em seu primeiro livro já encontramos referencias ao “Princípio Esperança”, de Ernst Bloch, porém, progressivamente, no curso dos anos 70, os conceitos e temas marxistas cada vez mais aparecem em sua obra até converter-se em um dos componentes fundamentais de sua reflexão sobre as causas da pobreza e a prática da solidariedade com a luta dos pobres por sua libertação. Rechaçando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do chamado “socialismo real”, Boff constata, não sem ironia, que o mesmo que o Cristianismo não se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não tem porque se equiparar aos “socialismos” existentes, que “não representam uma alternativa desejável por conta de sua tirania burocrática e pelo sufocamento das liberdades individuais”. O ideal socialista pode e deve assumir outras formas históricas [2] Em 1981, Leonardo Boff publica o livro “Igreja, Carisma e Poder”, uma reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde a Reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo -simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento. Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o poder do secretário geral do Partido Comunista soviético. Convocado pelo Vaticano em 1984 para um “colóquio” com a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (antes, o Santo Ofício), dirigida pelo Cardenal Ratzinger, o teólogo brasileiro não abaixa a cabeça, nem nega retratar-se; permanece fiel a suas convicções e Roma o condena a um ano de “silencio obsequioso”; finalmente, frente à multiplicação dos protestos no Brasil e em outros lugares, a sansão foi reduzida em vários meses. Dez anos mais tarde, cansado do hostigamento, das proibições e das exclusões de Roma, Boff abandona a ordem dos franciscanos e a Igreja, sem, no entanto, abandonar sua atividade de teólogo católico. A partir dos anos 90, interessa-se cada vez mais pelas questões ecológicas que aborda com o espírito de amor místico e franciscano pela natureza e com uma perspectiva de crítica radical do sistema capitalista. Será o objeto do livro Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, (S. Paulo, Ática, 1995) e escreve inúmeros ensaios filosóficos, éticos e teológicos que abordam esta problemática. Segundo Leonardo Boff, o encontro entre a Teologia da Libertação e a ecologia é resultado de uma constatação: “A mesma lógica do sistema dominante de acumulação e da organização social que conduz à exploração dos trabalhadores, leva também à pilhagem de nações inteiras, e, finalmente, à degradação da natureza”. Portanto, a Teologia da Libertação aspira a uma ruptura com a lógica desse sistema, uma ruptura radical que aponta a “libertar os pobres, os oprimidos e os excluídos, as vítimas da voracidade da acumulação injustamente distribuída e libertar a Terra, essa grande vítima sacrificada pela pilhagem sistemática de seus recursos, que põe em risco o equilíbrio físico, químico e biológico do planeta como um todo”. O paradigma opressão / libertação aplica-se, pois, para ambas: as classes dominadas e exploradas por um lado; e a Terra e suas espécies vivas, por outro [3]. Amigo próximo de Leonardo Boff (publicaram alguns livros juntos), Frei Betto é, sem dúvida, um dos mais importantes teólogos da libertação do Brasil e da América Latina e um dos principais animadores das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC) no início dos anos 60, Carlos Alberto Libânio Christo (seu nome verdadeiro) começou sua educação espiritual e política com Santiago Maritain, Emmanuel Mounier, o padre Lebret e o grande intelectual católico brasileiro Alceu Amoroso Lima, porém, durante sua atividade militante na União Nacional dos Estudantes (UNE), descobriu O Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã. Quando entrou como noviço na ordem dos dominicanos, em 1965, naquela época um dos principias focos de elaboração de uma interpretação liberacionista do cristianismo, já havia tomado firmemente a resolução de consagrar-se à luta da revolução brasileira [4]. Impressionado com a pobreza do mundo e pela ditadura militar estabelecida em 1964, incorpora-se a uma rede de dominicanos que simpatizam ativamente com a resistência armada contra o regime. Quando a repressão se intensificou, em 1969, socorreu a inúmeros revolucionários, ajudando-os a esconder-se ou a cruzar a fronteira para o Uruguai ou para a Argentina. Essa atividade custou-lhe cinco anos de prisão, de 1969 a 1973. Em um livro fascinante publicado no Brasil e reeditado mais de dez vezes, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella (Río de Janeiro, Ed. Bertrand, 1987), traça o retrato do dirigente do principal grupo revolucionário armado, assassinado pela polícia em 1969, bem como o de seus amigos dominicanos presos nas rodas da repressão e destroçados pela tortura. O último capítulo está consagrado à trágica figura de Frei Tito de Alencar, tão cruelmente torturado pela polícia brasileira que jamais recobrou seu equilíbrio psíquico: libertado da prisão e exilado na França, sofreu uma aguda mania de perseguição e cometeu suicídio em 1974. As Cartas da Prisão de Betto, publicadas em 1977, mostram seu interesse pelo pensamento de Marx, a quem designava, para burlar a censura política, “o filósofo alemão”. Em uma carta de outubro de 1971 a uma amiga, abadesa beneditina, observava: “a teoria econômico-social do filósofo alemão não teria existido sem as escandalosas contradições sociais provocadas pelo liberalismo econômico, que o conduziram a percebê-las, analisá-las e estabelecer princípios capazes de sobrepô-los” [5]. Depois de sua libertação da prisão, em 1973, Frei Betto consagrou-se à organização das comunidades de base. Durante os anos seguintes publicou vários folhetos que, em linguagem simples e inteligível, explicavam o sentido da Teologia da Libertação e o papel das CEBs. Logo, converteu-se em um dos principais dirigentes dos encontros intereclesiais nacionais, onde as CEBs de todas as regiões do Brasil intercambiam suas experiências sociais, políticas e religiosas. Em 1980 organizou o 4º Congresso internacional dos Teólogos do Terceiro Mundo. Desde 1979 Betto é responsável pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo, cidade industrial do subúrbio de São Paulo, onde nasceu o novo sindicalismo brasileiro. Sem vincular-se a nenhuma organização política, não escondia suas simpatias pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Após a vitória eleitoral do candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva, em 2001, foi designado pelo novo presidente para dirigir o Programa “Fome Zero”; no entanto, descontente com a orientação econômica do governo, prisioneiro dos paradigmas neoliberais, demitiu-se de seu posto dois anos depois. Enquanto alguns teólogos tentam reduzir o marxismo a uma “mediação sócio-analítica”, Betto defende, em seu ensaio de 1986, Cristianismo e Marxismo, uma interpretação muito mais ampla da teoria marxista que inclui a ética e a utopia: “o marxismo é, sobretudo, uma teoria da práxis revolucionária (…). A prática revolucionária sobrepõe-se ao conceito e não se esgota na análise estritamente científica porque, necessariamente, inclui dimensões éticas, místicas e utópicas (…). Sem essa relação dialética teoria-práxis, o marxismo se esclerosa e se transforma em ortodoxia acadêmica perigosamente manipulável pelos que controlam os mecanismos do poder”. Esta última frase é, sem dúvida, uma referencia crítica a URSS e aos países do socialismo real que constituem, em sua maneira de ver, uma experiência deformada por sua “ótica objetivista”, sua “tendência economicista” e, sobretudo, por sua “metafísica do Estado”. Betto e Boff, como a imensa maioria dos teólogos da libertação, não aceitam a redução, tipicamente liberal, da religião a um “assunto privado” do indivíduo. Para eles, a religião é um assunto eminentemente público, social e político. Essa atitude não é necessariamente uma oposição à laicidade; de fato, o cristianismo da libertação situa-se nas antípodas do conservadorismo clerical: -Predicando a separação total entre a Igreja e o Estado e a ruptura da cumplicidade tradicional entre o clero e os poderosos. -Negando a idéia de um partido ou um sindicato católico e reconhecendo a necessária autonomia dos movimentos políticos e sociais populares. -Rechaçando toda idéia de regresso ao “catolicismo político” pré-crítico e sua ilusão de uma “nova cristandade”. -Favorecendo a participação dos cristãos nos movimentos ou partidos populares seculares. Para a Teologia da Libertação não existe contradição entre essa exigência de democracia moderna e secular e o compromisso dos cristãos no âmbito político. Trata-se de dois enfoques diferentes da relação entre religião e política: desde o ponto de vista institucional é imprescindível que prevaleça a separação e a autonomia; porém, no âmbito ético-político o imperativo essencial é o compromisso. Levando em consideração essa orientação eminentemente prática e combativa, não é de se estranhar que muitos dos dirigentes e ativistas dos movimentos sociais mais importantes dos últimos anos -desde 1990-, fossem formados na América Latina segundo as idéias da Teologia da libertação. Podemos dar como exemplo o MST, um dos movimentos mais impressionantes da história contemporânea do Brasil, por sua capacidade de mobilização, seu radicalismo, sua influência política e sua popularidade (além de ser uma das principais forças da organização do Fórum Social Mundial). A imensa maioria dos dirigentes ou ativistas do MST procedem das CEBs ou da Pastoral da Terra: sua formação religiosa, moral, social e, em certa medida, política, efetuou-se nas filas da “Igreja dos pobres”. No entanto, desde sua origem, nos anos 70, o MST optou por ser um movimento leigo, secular e autônomo e independente com relação á Igreja. A imensa maioria de seus militantes é católica; porém, também há evangélicos e não crentes (poucos). A doutrina (socialista!) e a cultura do MST não fazem referência ao cristianismo; porém, podemos dizer que o estilo de militância, a fé na causa e a disposição ao sacrifício de seus membros, muitos têm sido vítimas de assassinatos e até de matanças coletivas durante os últimos anos, têm, provavelmente, fontes religiosas. As correntes e os militantes cristãos que participam no movimento altermundista são muito diversos -ONGs, militantes dos sindicatos e partidos de esquerda, estruturas próximas à Igreja- e não partilham das mesmas escolhas políticas. Porém, a imensa maioria se reconhece nas grandes linhas da Teologia da Libertação, tal como a formularam Leonardo Boff, Frei Betto, Clodovis Boff, Hugo Assmann, Dom Tomás Balduino, Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga, e tantos outros conhecidos e menos conhecidos, e partilham sua crítica ética e social do capitalismo e seu compromisso pela libertação dos pobres. BIBLIOGRAFIA Leonardo Boff, Jesus Christ Libérateur, Paris, Cerf, 1985. L. Boff, Eglise, Charisme et Pouvoir, Bruxelles, Lieu Commun 1985. L. Boff, O caminhar da Igreja com os oprimidos, Petrópolis, Vozes, 1988, 3a edição, prefacio de Darcy Ribeiro. L. Boff, “Je m’explique” (entrevistas con C. Dutilleux), Paris, Desclée de Brouwer, 1994. L. Boff, Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, S.Paulo, Ática, 1995. L. Boff, “Libertação integra: do pobre e da terra”, in A teologia da libertação. Balanço e Perspectivas, S.Paulo, Ática, 1996. Fr. Fernando, Fr. Ivo, Fr. Betto, O canto na fogueira. Cartas de três dominicanos quando em cárcere político, Petrópolis, Vozes, 1977. Frei Betto, Cristianismo e Marxismo, Petrópolis, Vozes, 1986. Frei Betto, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella, Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 1987. Théologies de la libération. Documents et debats, Paris, Le Cerf, 1985. Michael Löwy, La guerre des dieux. Religion et politique en Amerique Latine, Paris, Ed. du Felin, 1998. NOTAS: [1] L. Boff, Jesus Christ Libérateur, París, Cerf, 1985, pp. 51-55. Ibid. p. 275. [2] L.Boff, “Libertação integra: do pobre et da terra”, in A teologia da libertação. Balanço e Perspectivas, S.Paulo, Ática, 1996, pp. 115, 124-128. [3] Entrevista de Frei Betto con el autor, 13-09-1988. [4] Fr. Fernando, Fr. Ivo, Fr. Betto, O canto na fogueira. Cartas de três dominicanos quando em cárcere político, Petrópolis, Vozes, 1977, pp. 39 e 120. [5] Frei Betto, Cristianismo e Marxismo, Petrópolis, Vozes, 1986, pp. 35-37.