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terça-feira, 1 de julho de 2008
Sobre as acusações do Ministério Público ao MST no Rio Grande do Sul
Ecoaram fortemente nesta semana diversos documentos produzidos pelo Ministério Público (MP) no Rio Grande do Sul, os quais descrevem as ações organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, em alguns outros casos, protestos organizados pela Via Campesina. O MP também faz diversas acusações em tais peças jurídicas, e alguns de seus membros reiteraram tais opiniões em entrevistas oferecidas a diversos meios de comunicação, revelando surpreendente retórica politicamente obscurantista.
Em sua essência, o MP desenvolve uma fantasiosa teoria sobre as formas de luta social que vêm sendo organizadas há tantos anos pelos trabalhadores rurais sem-terra no Estado. Meu nome foi citado na ação, em função de minhas pesquisas sobre o MST, particularmente no Rio Grande do Sul, mas de forma que julgo inteiramente distorcida, inclusive porque jamais concluí, a partir dessas pesquisas, sobre as ilações que o MP utiliza nos seus documentos tornados públicos.
São absurdas, por exemplo, as acusações que fazem ao Movimento, apontando-o como um “braço de guerrilha”, no estilo das FARC colombianas. Ou ainda, em acusação que é pelo menos delirante, que o MST teria lutado pela formação de alguns assentamentos na cercania de Porto Alegre, porque essas são áreas vizinhas às redes de distribuição de energia e à mais importante refinaria de petróleo do Estado e, assim sugerem quase explicitamente os procuradores, poderia ocorrer em um momento futuro sabotagens ou algo similar.
Acompanhei os esforços de organização dos trabalhadores rurais e a conquista desses assentamentos na região metropolitana, quase todos formados ao longo da década de 1980, e acusação como esta é completamente descabida, pois a formação daqueles assentamentos respondeu apenas à existência de imóveis improdutivos então existentes, que foram ocupados, como forma de pressão e, posteriormente, desapropriados na forma da lei.
A interpretação do MP estadual e a análise dos documentos levam a crer, desta forma, que existe uma estratégia de forçar a desmobilização do Movimento, inclusive quando inicialmente foi proposta a “dissolução” da organização, intenção posteriormente eliminada dos documentos finais do Ministério Público.
Mas os textos refletem, claramente, um posicionamento explícito alinhado aos argumentos históricos dos grandes proprietários de terra do Estado, dissociando o MP de sua missão maior de preservação do Estado de Direito. Este particularismo na aplicação da lei ocorre quando, por exemplo, o MP adota posturas que ferem, por um lado, preceitos garantidos na Constituição como, por exemplo, o direito de ir e vir (pois foram proibidas as marchas de trabalhadores rurais sem-terra, forma de pressão que corriqueiramente o Movimento utilizou para exigir maior velocidade na implementação da reforma agrária) ou, ainda, o direito de formar acampamentos em propriedades contíguas a imóveis passíveis de futura desapropriação, como outra forma de pressão que é legítima e legal, pois esses acampamentos foram organizados com a anuência dos respectivos proprietários.
Ao assim agir, o MP tem assumido uma face arbitrária que transita ao arrepio das leis cuja observância são sua própria razão de existência. As acusações igualmente acentuam a “natureza política” do MST, em aspecto quase ridículo, pois seria impensável que uma força social como o Movimento, lutando pela implementação da reforma agrária, pudesse abrir mão de sua natureza política.
Ainda que minhas análises sociológicas sobre o MST apontem problemáticos aspectos de sua estruturação interna e opções estratégicas, não pode ser negado (e eu seria o primeiro a fazê-lo, conhecendo como conheço as lutas sociais dos sem-terra desde o seu nascedouro) o que talvez seja o maior mérito e conquista política do Movimento, fazendo-a, igualmente, uma conquista de toda a sociedade brasileira. Qual seja, após tantos anos de existência, ter conseguido reverter a correlação de forças existente no meio rural brasileiro, tornando os grandes proprietários de terra, atualmente, reféns das formas de pressão, especialmente as ocupações, que os sem-terra regularmente organizam, em diversas regiões do Brasil.
Esta inversão, que é um ganho histórico da sociedade brasileira, pode significar que, finalmente, as regiões rurais brasileiras poderão ser democratizadas em suas relações sociais e os direitos dos trabalhadores e das famílias rurais mais pobres serem reconhecidos mais efetivamente. Ações como a do MP gaúcho, desta forma, remam na direção contrária e tentam ainda manter o conservadorismo, quando não o autoritarismo, dos grandes proprietários de terra, e devem ser repudiadas fortemente.
É importante, portanto, que os diversos agrupamentos democráticos, estimulados pelo Partido dos Trabalhadores e seus membros, denunciem tal tentativa de cerceamento da organização política de todos os setores sociais, particularmente das populações mais pobres em nosso país.
Solidarizo-me irrestritamente com o MST e a reação a este abuso de poder que vem tentando encurralar os trabalhadores rurais sem-terra de exercerem um direito constitucional de organização e desenvolvimento de formas de pressão que possam significar a expansão do programa de reforma agrária ora em curso no país.
Por fim, talvez seja este um momento importante para que o MST possa refletir sobre um aspecto que o MP vem ressaltando e que é o único que, talvez, tenha alguma razão de ser, sendo provavelmente a única face razoável desta atrapalhada ação daquele órgão da Justiça. Refiro-me à exigência que os documentos fazem da dissolução do Movimento porque “a organização não teria base legal” para existir, pois não tem registro oficial. No próximo mês de outubro completaremos vinte anos da promulgação da Constituição brasileira, que abriu um período de vibrante democratização do país. Desta forma, não deixa de ser pelo menos estranha a decisão da direção nacional do MST de manter a organização sob formato semiclandestino, como se ainda estivéssemos sob um regime autoritário ou uma ditadura qualquer.
A democracia brasileira consolidou-se, temos um presidente popular e progressista, extremamente dedicado à ampliação de políticas sociais que, gradualmente, reduzam os níveis de pobreza e de desigualdade social. Os diversos atores do sistema político são todos conhecidos; suas organizações têm regimes de funcionamento conhecidos e, assim, seus dirigentes são igualmente escolhidos em espaços transparentes e públicos, segundo aqueles procedimentos, podendo desta forma reivindicar uma legitimidade incontestável.
Ao optar pela reiteração de uma forma de existência semiclandestina, o MST arrisca-se a perder apelo popular e, especialmente, a legitimidade de suas ações e formas de pressão tornam-se igualmente reduzidas. Este episódio desencadeado pelo Ministério Público gaúcho, que é preocupante e merece o repúdio de todos as correntes democratas, talvez sirva pelo menos para estimular tal reflexão por parte dos membros da organização dos sem-terra.
Zander Navarro (Departamento de Sociologia, UFRGS, Porto Alegre)
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