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quarta-feira, 30 de julho de 2008
Segurança alimentar e biocombustíveis: um dilema?
O dramático aumento dos alimentos registrado recentemente tem múltiplas causas e, no momento, os biocombustíveis provavelmente representam uma das menos influentes. Mais fundamentalmente, a crise alimentar atual está relacionada com a falta de investimentos públicos na agricultura e na segurança alimentar.
Georges Flexor
O dramático aumento dos preços dos alimentos ocorrido esses últimos dois anos tem provocado um intenso debate a respeito do papel dos biocombustíveis na crise de segurança alimentar atual. Embora todos os principais atores desse debate – sejam eles instituições globais, governos, empresas ou organização não governamentais – reconheçam a existência de múltiplas causas para explicar a abrupta elevação dos preços dos alimentos, existe certo consenso sobre o fato de que a produção de biocombustível impacta a produção de alimentos e, portanto, seus preços. Mas esse quase consenso se evapora quando se trata de avaliar e hierarquizar a responsabilidade da crescente produção de biocombustível no aumento dos preços dos alimentos. Nos parágrafos a seguir pretendo trazer algumas informações que possam nos ajudar a abordar essa relação.
Começo com algumas observações acerca do comportamento recente dos preços agrícolas. Em primeiro lugar, constata-se que todas as principais commodities agrícolas sofreram uma elevação dos preços. Tomando 2004 como ano-base, estimativas do Banco Mundial estimam que os preços médios cresceram quase 80% nos últimos quatro anos no caso do milho, 56% para a soja e mais que dobraram para o trigo e o arroz. Segundo recente estudo da OCDE-FAO, esses preços permanecerão elevados durante os próximos anos, ainda que esteja prevista uma diminuição gradual a partir de 2009. Estima-se, por exemplo, que o preço médio do milho no mercado mundial voltará em 2015, após um pique em 2009, a patamares próximos daqueles observados em 2007. Essa tendência deve ser também observada no caso da soja e do trigo. No entanto, os preços médios do arroz devem permanecer elevados durante mais tempo e mesmo que se espera uma diminuição a partir da próxima década, ela deverá ser gradual e pouco significativa.
Embora devam ser tomados com precaução, os dados recentes mostram que os canais de transmissão de preços entre aumento da produção de biocombustíveis e elevação dos preços agrícolas são mais complexos do que uma simples relação de causa e efeito. Se parece muito provável que a crescente produção de etanol e biodiesel impactam negativamente os preços do milho e da soja (sem esquecer a palma/dendê), seus efeitos sobre o comportamento dos preços do trigo e do arroz são bem menos óbvios. A relação direta, ainda que de difícil mensuração, entre preços do milho e produção de etanol deve-se ao fato de que uma proporção substancial da produção de milho nos Estados Unidos direcione-se doravante a produção de biocombustíveis. Segundo os estudos supracitados, cerca de 30% da oferta de milho nesse país – ou seja, cerca de 10% da produção mundial – tem sido absorvida por sua indústria de etanol, sendo em grande parte responsável pela aceleração do aumento de preços ocorrido desde 2006.
Já no caso das oleaginosas como a soja, os impactos dos biocombustíveis são mais difíceis de serem avaliados e mensurados. As expectativas de aumento da demanda por biodiesel na União Europeia e em menor medida nos Estados Unidos, na Indonésia e no Brasil pressiona os preços já que o aumento estimado da produção de biodiesel nos próximos dez anos poderá representar um terço do aumento do consumo total de óleo vegetal. No entanto, cabe notar que parte significativa da produção de biodiesel deve ser realizada a partir de oleaginosas outras que a soja, tais como canola ou dendê. É, portanto, difícil relacionar diretamente o aumento dos preços da soja com a produção de biocombustível. O mais provável é que a elevação dos preços dessa oleaginosa decorra do aumento do comércio mundial puxado, principalmente, pela demanda chinesa, refletindo os efeitos gradual da redução da pobreza sobre o aumento do consumo de óleo e carnes que eleva a demanda por soja e derivados (farelo e óleo).
No que tange o aumento dos preços do trigo, sua relação com a produção de biocombustível é ainda mais fina. Entre 2005 e 2007, por exemplo, o aumento da demanda por trigo e outras cereais cresceu 5%, passando de 1.622 para 1702 milhões de toneladas. Se por um lado, podemos notar que metade desse aumento está associado a produção de biocombustíveis, em particular nos Estados Unidos onde a demanda para este tipo de uso alcançou 80 milhões de toneladas em 2007. Por outro lado, a utilização de trigo e cereais para etanol continua marginal e como será vista daqui a pouco, os recentes aumentos dos preços do trigo foram provocados em grande medida por problemas conjunturais afetando a oferta e que foram amplificados pela atuação de especuladores institucionais e políticas de restrição as exportações.
Para finalizar, há o caso do arroz, um alimento fundamental para grande parte da população dos países em desenvolvimento. Desde 2007, o preço do arroz tem crescido abruptamente e essa tendência se acelerou recentemente, o preço do arroz tailandês passando 365 para 562 dólares a toneladas de janeiro a março de 2008. Para os países em desenvolvimento, africano e asiático particularmente, essa elevação dos preços é trágica e pode arruinar, num curto espaço de tempo, as recentes melhorias das condições de vida constatadas nesses países. Todavia, não existe correlação linear entre aumento dos preços do arroz e produção de biocombustíveis. Com efeito, visto que a demanda por arroz por parte da indústria de etanol é virtualmente nula não se pode inferir que os biocombustíveis impactam a formação de seus preços.
De maneira geral, a não ser no caso do milho, a crescente produção de biocombustível não parece afetar diretamente os preços dos principais commodities agrícolas. No entanto, há provavelmente mecanismos de transmissão de preços menos lineares. Por um lado, a crescente produção de milho direcionada à indústria de etanol nos Estados Unidos tende a pressionar as áreas de cultivos de soja ou algodão, exercendo um impacto negativo sobre a produção de oleaginosas. Em conjunto com a elevação dos preços do milho, a substituição da área de soja por milho pode contaminar o conjunto de preços das principais commodities com efeito difuso sobre a inflação agrícola recente. Por outro lado, as políticas implementadas para promover a oferta de etanol ou biodiesel podem alterar em certo grau as expectativas de preços futuros e, em ultima instância, pressionar os preços correntes. Pode-se esperar, por exemplo, que cada vez mais terras serão destinadas a produção de biocombustíveis, criando uma pressão fundiária e um aumento dos custos.
Se os diversos agentes que atuam nos mercados agrícolas fossem racionais e as informações relevantes abundantes e de fácil acesso, os preços deveriam refletir as condições de oferta e demanda. O problema é que os agentes têm pouco conhecimento sobre o estado futuro da demanda e da tecnologia e, como destacou o prêmio nobel de Economia D. Kahneman, de maneira geral tomam suas decisões a partir de um conjunto restrito de informações disponíveis e representativas de certa situação. No cenário incerto da crise financeira atual, operadores com poucas opções atrativas para investir podem decidir direcionar seus recursos para comprar contratos agrícolas, criando uma pressão adicional sobre os preços correntes de commodities como milho, soja ou trigo. Com a maior integração das commodities agrícolas (milho, soja e trigo) nos circuitos financeiros, os impactos dos biocombustíveis sobre os preços agrícolas, nesse sentido, podem estar muito mais associados as emoções e sentimentos do momento do que a um cálculo racional visando maximizar a utilidade esperada. Cabe observar, no entanto, que os movimentos de capitais pouco racionais do mercado financeiro não explicam a tensão sobre os preços do arroz. De maneira geral, com a exceção do milho, o aumento dos preços agrícolas parece mais associado aos problemas de oferta do que ao crescimento da produção de biocombustíveis.
Como assinalei no início deste artigo, o dramático aumento dos alimentos registrado recentemente tem múltiplas causas e, no momento, os biocombustíveis provavelmente representam uma das menos influentes. Entre outros aspectos que afetam os preços agrícolas, destaca-se, além da desvalorização da unidade de conta internacional (o dólar americano), o aumento dos preços do petróleo e seus efeitos sobre os custos dos insumos e do transporte. Os preços dos fertilizantes, por exemplo, têm se elevado rápida e consistentemente, proporcionando lucros excepcionais para as grandes multinacionais que dominam essa indústria. As políticas que visam limitar as exportações de grãos implementadas por vários países no intuito de minimizar a inflação estão também colocando “lenha na fogueira”, sobretudo num momento em que os estoques são historicamente baixos e a oferta estressada pelas secas que atingiram grandes países agrícolas em 2006/2007. Mais fundamentalmente, a crise alimentar atual está relacionada com a falta de investimentos públicos na agricultura e na segurança alimentar. Acreditar, como advogaram durante décadas os principais organismos internacionais, que os mercados resolvam corretamente os problemas de oferta e de acesso aos alimentos pode revelar-se um risco perigoso. A segurança alimentar é um bem público tanto quanto a segurança energética e militar. Sua responsabilidade, portanto, não deveria ser deixada ao livre arbítrio das negociações dos interesses privados.
Georges Flexor é professor adjunto do Instituto Multidisciplinar IM/UFRRJ e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura OPPA/CPDA.
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