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sábado, 9 de janeiro de 2010
2010: sob o estigma da crise
Entrevista do historiador Mário Maestri ao Correio da Cidadania
Escrito por Valéria Nader
06-Jan-2010
Se a rapidez com que foi retomada a nova onda de otimismo e euforia em 2009, após a eclosão da crise financeira internacional, não deixa margem para visões ingênuas – conforme exaustivamente analisado por nossos editorialistas, colunistas e colaboradores na edição final retrospectiva de 2009 -, muito menos há que se cultivá-las nesse início de 2010.
Não houve qualquer alteração no atual padrão de acumulação capitalista - cuja característica fundamental é a radical instabilidade, em face da hegemonia absoluta do capital financeiro e de sua lógica de funcionamento – como indicara o economista Luiz Filgueiras em entrevista à edição retrospectiva. Em alinhamento com esta visão, o historiador Mário Maestri, o entrevistado especial dessa edição prospectiva, ressalta, que ‘nada foi feito no relativo às razões estruturais da crise, sobretudo o imenso descompasso entre a produção em crescimento e o estreitamento incessante, relativo e absoluto, da renda do trabalho e, portanto, da capacidade de consumo’.
Não há, assim, nenhuma indicação de que a economia se voltará finalmente para o mercado interno, conforme promessa do governo, revertendo a tendência galopante de reprimarização de uma economia, voltada essencialmente às exportações. Antevê-se retomada frágil, não sustentável, vez que apoiada em economia real estreita.
E o enfraquecimento do mundo do trabalho impingirá ainda fortes marcas políticas em um ano de eleições. Tende a prosseguir a ocupação do espaço político da esquerda por representantes e propostas de segmentos sociais, sobretudo médios, com contradições não essenciais com a ordem capitalista vigente. Para Maestri, a candidatura de Marina Silva seria emblemática desse processo.
Confira a seguir entrevista exclusiva.
Correio da Cidadania: Qual sua opinião sobre o estado real da economia mundial? Como será 2010?
Mario Maestri: A crise de fins de 2008, inaugurada pela quebra do banco de investimentos Lehmann Brothers, o quarto maior dos EUA, encerrou abruptamente o ciclo de excepcional acumulação vivido pelo capital entre 2002-2008, nascido da contra-revolução neoliberal de fins de 1980 e da produção artificial do consumo, em contexto de depressão tendencial da renda popular, através do endividamento individual e público; da criação de capital fictício e da renda artificial; da apropriação da renda pública; dos gastos de guerra etc.
A crise foi combatida pelos bancos centrais mundiais com transferências astronômicas ao sistema industrial, sobretudo bancário-financeiro, redução radical das taxas de juros, facilitando a retomada do crédito, a produção e a acumulação de capitais. O que impediu crise geral do sistema e ensejou superação da primeira onda depressiva, após um ano, ao contrário dos cinco necessários em 1929.
Porém, nada foi feito no relativo às razões estruturais da crise, sobretudo o imenso descompasso entre a produção em crescimento e o estreitamento incessante, relativo e absoluto, da renda do trabalho e, portanto, da capacidade de consumo. No frigir dos ovos, a racionalização, concentração e centralização da produção aceleradas pelos financiamentos estatais aprofundaram a destruição e a exploração do trabalho vivo.
A sensação de superação da crise, permitida pela expansão normal após a depressão – reposição de estoques, valorização do capital etc. – também é necessidade político-ideológica do capital para retomar a oposição à regulamentação e à expansão da área pública, soluções que infiltraram as percepções populares, mesmo impermeabilizadas pela retórica fundamentalista das décadas anteriores.
A retomada da expansão será frágil, não sustentável, pois apoiada em economia real ainda mais estreita, incapaz de repetir o ciclo de acumulação anterior. A saída da crise de 1929, com trinta anos de expansão, foi parida pela Segunda Guerra, com depressão de salários, desvio de gastos públicos, reorganização da produção mundial, gastos de reconstrução etc. Como as águas procuram o vale, a retomada econômica desembocará em novo ciclo depressivo. Porém, sem superação política, não haverá superação econômica da crise, impondo-se seus efeitos sociais barbarizantes.
CC: 2009 encerrou-se entre nós sob paradoxal clima de otimismo, quase euforia, após esta eclosão da crise de 2008, com fortes repercussões no Brasil!
MM: No Brasil, a euforia manteve-se durante o momento recessivo. A crise não chegaria e, se chegasse, seria "marolinha". E, antes que se instalasse, já saíamos dela primeiro e melhor que todos! O Brasil vive sob domínio de representações virtuais congratulatórias de desapiedada realidade objetiva, difundidas, sobretudo, mas não apenas, pela mídia. Manipulação das consciências e das percepções necessárias à dura ditadura do capital.
Alardeia-se que famílias com renda suficiente para o aluguel de apartamento de dois quartos e três refeições ao dia constituem nova e poderosa classe média! Festejam-se milhares de novos postos de trabalho, que nos fatos repõem apenas os perdidos durante a recessão! Somos o país poderoso que sediará as Olimpíadas em 2016 e o Mundial de Futebol de 2014, enquanto a polícia pacificadora da Cidade Maravilhosa ocupa militarmente bairros populares e fecha os olhos a milicianos que trocam o negócio da droga pelo escorcho popular!
É a manipulação das consciências que alcançou virtuosidade nos governos Lula da Silva, facilitada, por um lado, pela fragilidade estrutural e conjuntural do mundo do trabalho e, por outro, pela hegemonia do capital e de seu consenso sobre Lula da Silva e sua rede de partidos e organizações com raízes populares – PT, PCdoB, CUT etc. – para a manutenção da expropriação popular.
CC: Trata-se de manipulação nascida apenas da mídia ou com raízes mais profundas?
MM: O Brasil possui área continental e rica variedade climática, ecológica, geológica, hídrica. Sobretudo, possui uma das maiores populações mundiais, lingüisticamente homogênea, profundamente envolvida pela globalização capitalista. População que, em boa parte, vive situações, percepções e tradições, digamos, semi-modernas, que permitem super-lucratividade ao capital, no ciclo recessivo ou expansivo.
Parcelas de nossa população emergiram recente ou parcialmente de espaços sociais pré-capitalistas, dominadas por percepções semi-mágicas, fortalecidas, organizadas e exploradas pela indústria da alienação religiosa, outro eixo fundamental da gestão das consciências. Condições miseráveis de vida e super-exploração são quase tidas como elementos semi-naturais.
No Brasil, a religião é o setor mais próspero da indústria da alienação, superando a própria mídia. Tanto que tem abocanhado vorazmente crescentes posições desta última, especialmente em televisão e rádio. Destaquem-se os laços e enormes concessões de Lula da Silva e do PT ao setor religioso, tradicional e emergente, e o atual crack dos miseráveis, no passado combatido pelas forças republicanas e socialistas, que se acomodam agora gostosamente a ele.
CC: Essa situação de alienação possui conseqüências outras que as políticas?
MM: Enormes parcelas da população compram mercadorias modernas, pagando diversas vezes o preço, preocupadas apenas com o valor das prestações. Atingidas pelo desemprego, desastres climáticos, crises ambientais, surtos epidemiológicos, violência urbana, embocam saídas individuais e voltam os olhos aos céus, não conseguindo enxergar as responsabilidades do capital e do Estado por suas mazelas.
O fato de que o Brasil seja campeão da desigualdade – somos o septuagésimo país no Índice de Desenvolvimento Humano! – constitui um trunfo para o capital, pois lhe permite trabalhar com mão-de-obra de produtividade que se aproxima cada vez mais da belga, pagando salários diretos e indiretos indianos. As próprias políticas focalizadas objetivam expandir o consumo, minorar a violência, diminuir a migração para a cidade e manter parte da população nacional trabalhadora como permanentes lúmpens modernos, como enfermos em semi-coma sem fim.
A expansão governamental das políticas focalizadas, enquanto o salário mínimo é arbitrado em 510 reais, fortemente abaixo do seu valor real, garante essa violenta extração de mais-valia e dificulta uma inserção econômica para uma enorme parte da população, que lhe permitiria estabelecer laços estáveis com o mundo do trabalho constituído e organizado e, nesse processo, expandir suas forças sociais e vitais, adquirindo visões e práticas crescentemente racionais e cidadãs.
CC: O otimismo atual a que referi não é, portanto, justificado. O que espera o Brasil em 2010 e nos próximos anos?
MM: Antes da crise, nos anos de ouro (2002-2008), as taxas de crescimento do Brasil foram significativamente menores do que as de países emergentes como a China, a Índia, a Argentina, a Venezuela. E agora, a retomada econômica está sendo e será mais tímida do que na maior parte daqueles países. China e Índia seguiram crescendo durante a crise! O que permitiu que a recessão do Brasil, exportador de commodities, não fosse ainda pior.
O arremedo de combate à crise praticado no mundo repetiu-se em forma ainda mais patética no Brasil, onde o sistema financeiro não fora abalado tão profundamente, devido à importância dos bancos estatais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES), por estarmos no início da fase de endividamento popular e pela enorme lucratividade normal do sistema bancário etc.
Também no Brasil o Estado escancarou a bolsa ao capital bancário, financeiro e industrial hegemônicos, com benesses também sem contrapartidas – empréstimos, renúncia fiscal etc. Apoiou o consumo interno com medidas focalizadas, gastos públicos, facilidade de endividamento... Ao contrário do resto do mundo, a taxa básica de juros foi reduzida com atraso e timidamente, mantendo-se sempre uma das maiores do mundo. E logo, logo, voltará a aumentar!
Os juros reais elevados, pagos com a exploração e miséria popular, seguiram garantindo uma enorme lucratividade ao capital financeiro e a atração de capitais especulativos, o que permitiu retomada da bolsa de valores, com lucratividade real já superior à das empresas, em reinício da embriagadora produção de capital fictício! A conseqüente valorização do real deprime os preços internos, através da expansão das importações – no fim de ano, muita gente pôde comer bacalhau, viajar ao exterior, comprar bugigangas importadas! Tudo à custa da precipitação das exportações e da inflexão da balança comercial, em momento de queda da receita pública!
CC: Mas o governo está afirmando que a economia se voltará finalmente para o mercado interno!
MM: A política de reorientação da produção ao exterior, inaugurada pela ditadura militar e radicalizada nas últimas décadas, separou geográfica e socialmente a produção de mercadorias no Brasil, a baixo custo, de sua realização, no mercado mundial. A depressão do valor do salário impulsionou sempre uma produção de costas ao mercado interno. A retomada da produção mundial será limitada, com inflexão do mercado mundial, crescentemente competitivo, sobretudo com a possível expansão das exportações dos EUA e sua retração como grande consumidor mundial, impulsionada pela queda do dólar e o desemprego de dez por cento da população ativa.
A valorização do real; os juros altos; o esgotamento da capacidade de endividamento popular; os limites das políticas focalizadas, devido à queda da receita pública; a interrupção da reforma agrária; a arbitragem somítica do salário mínimo etc. são registros de que o mercado interno continuará sendo desemboco secundário incapaz de substituir o recuo das exportações.
CC: Por que, então, se prossegue nesta política?
MM: A valorização do real facilita as importações, deprimindo os preços internos, segurando a inflação, facilitando as viagens ao exterior e a compra de importados e, sobretudo, assegurando o pagamento da dívida pública. Tudo isso contribui para euforia que certamente será cultivada com carinho em 2010, ano da corrida presidencial. O custo dessa política é desindustrialização e endividamento, de gravíssimas seqüelas em médio prazo. Porém, convenhamos, se as expectativas da renda petroleira, devido às reservas do pré-sal, se realizarem, essa política terminará sendo ótimo meio para transferir parte da mesma ao capital financeiro, através do pagamento da dívida!
CC: Em início de 2009, você se referia à "enorme fragilidade política, ideológica e organizacional do mundo do trabalho", propondo que "o espaço político da esquerda tenderia a ser ocupado por representantes e propostas de segmentos sociais, sobretudo médios", "com contradições não essenciais com a ordem capitalista". A candidatura de Marina Silva seria emblemática desse contexto?
MM: As tendências de enfraquecimento do mundo do trabalho e monopolização da esquerda pelas classes médias aprofundaram-se em 2009. Marina Silva é caso político emblemático desse processo, mais amplo. Isoladamente, sua candidatura constitui apenas retorno oportunista e revanchista de ministra defenestrada pelo governo, fogueada pela inesperada vitória do outsider Obama. Ela é negra, mulher, ecologista, de origem pobre, e com permanência no governo que certifica afinidade com o capital!
Sem qualquer possibilidade de emplacar, Marina Silva projetará o PV e, espera-se, empurrará a candidatura de Serra. Ela tornou-se emblema da crise da esquerda socialista, classista e marxista quando sua postulação foi abraçada por Heloísa Helena, Luciana Genro e outros segmentos importantes do PSOL, em radicalização de inflexão mais antiga das posições classistas naquele partido, que tiveram registro exemplar no financiamento da campanha do PSOL rio-grandense (MÊS) pela Gerdau, em 2008.
As eleições de 2006 resultaram em expressiva votação de Heloísa Helena – terceira colocada, quase sete por cento dos votos – e derrota da Frente de Esquerda que jamais se aproximou do que se propusera. Já na formação da coligação, a direção psolista impôs sem discussão a candidatura de Heloísa Helena e, a seguir, de vice que, descomprometido com a Frente, lançou programa de governo desenvolvimentista-burguês, também sem qualquer consulta.
Com o início da campanha, a receptividade da candidata ensejou viés eleitoreiro, moralista e demagógico, sob a ilusão de chegada ao segundo turno. A priorização da denúncia da corrupção ensejou que a campanha terminasse resultando em mero pronunciamento moralizador, de cunho democrático-burguês, sem continuidade, de eleitorado majoritariamente oriundo das classes médias, em vez de difusão política e centralização orgânica de consenso anti-capitalista popular.
CC: Você vê a campanha da Frente de Esquerda de 2006 como uma derrota?
MM: A impossibilidade do uso da campanha para educação-organização popular; a desqualificação programática; a dissolução do bloco após o pleito etc. registraram o fiasco da iniciativa, apesar do volume de votos do primeiro turno, não transferido proporcionalmente aos candidatos da Frente. Após o pleito, setores do PSOL, a direção do PSTU, criticaram duramente o eleitoralismo da campanha. Em 2009, em vez de superação dos desvios, impôs-se regressão programática e organizativa.
Cansada do jejum de dois anos de mandato e de outros dois como vereadora de capital marginal, Heloísa Helena definiu como meta pessoal indiscutível a reconquista da sinecura senatorial, negando-se a apresentar-se novamente como candidata. Sua decisão enfraquecia os projetos parlamentares, não apenas da ala conservadora do PSOL, mas abria a possibilidade de candidatura classista e socialista retomando a proposta inicial de 2006. Paradoxalmente, o PSTU se dissociou desse projeto classista ao defender a candidatura de Heloísa Helena, devido ao seu cacife eleitoral que, desta vez, não qualificou.
Transferida a decisão para convenção do PSOL em março de 2010, o apoio à Marina Silva perde força naquele partido, por ela ser ex-petista e ex-ministra de Lula da Silva e o PV, partido fisiológico. O perigo da ruptura do PSOL, no caso dessa coligação, permite que avance proposta de candidato classista e socialista do PSOL e, eventualmente, da Frente de Esquerda reconstruída, com adesão formal dos apoiadores de Marina psolistas.
O nome mais forte para candidatura classista e socialista é certamente o do velho combatente Plínio Arruda Sampaio, que empolga e recolhe consenso em área mais ampla que a do PSOL e da Frente de Esquerda. Caso se imponha essa solução, teríamos que lamentar apenas os valiosos meses perdidos de intervenção política, talvez pedágio exigido para permitir-se candidatura de esquerda, permanecendo a necessária e imprescindível incorporação à Frente do PSTU, que lançou a pré-candidatura de seu presidente nacional, José Maria de Almeida.
CC: Na entrevista citada, você mencionava ainda que, ao lado das contradições passadas e estruturais do Brasil, a derrota histórica do trabalho, em fins dos anos 1980, levou à descrença geral na revolução e no socialismo.
MM: A derrota histórica de fins dos anos 1980 destruiu os Estados operários, lançando na guerra, miséria, desemprego, desassistência, super-exploração centenas de milhões de trabalhadores. O inverno europeu já matou dezenas de "moradores de rua" na Polônia, categoria inexistente antes daqueles sucessos, como os hiper-milionários, tão festejados pela grande imprensa. No mundo capitalista, as privatizações, perdas de direitos, desregulamentação do trabalho, produção, mercado etc. ensejaram e continuam ensejando igualmente verdadeira hecatombe social, com destaque para as novas gerações e os segmentos sociais mais frágeis.
Essa derrota acelerou a dissolução e reconversão neoliberal de partidos e sindicatos, com o caso exemplar do poderoso PCI, hoje Partido Democrata pró-capitalista, inspirado no homônimo estadunidense, e a debandada ou inflexão de intelectuais, políticos e sindicalistas com anterior referência no mundo do trabalho! Esse retrocesso abateu-se duramente sobre as visões e projetos de mundo do trabalho. Desprestigiaram-se os princípios da solidariedade, fraternidade, igualdade etc. Mesmo organizações que se reivindicam como revolucionárias acomodam-se à subsistência semi-vegetativa em ordem capitalista já naturalizada, abandonando a luta pelo poder, mesmo como referência.
A derrota do trabalho vem sendo apresentada e compreendida maciçamente como fim definitivo da possibilidade de reorganização racional do mundo, precisamente quando a ordem socialista se mostra como única barreira à barbarização que ameaça em forma cada vez mais candente a própria sobrevida da humanidade. Com a destruição da memória dos anos de luta, de construções e de vitórias dos trabalhadores, toda uma geração cresceu aleitada pelo fundamentalismo capitalista.
CC: Como você antevê a possibilidade de organização efetiva contra essa realidade das forças socialistas nesse ano eleitoral?
MM: Nos últimos anos, devido à descrença no projeto de superação essencial e socialista da crise capitalista, mesmo ali onde os trabalhadores derrotam a burguesia ou alcançam importantes vitórias conjunturais, como na Argentina, Venezuela, Bolívia, as classes oprimidas não arriscam tomar o poder, permitindo a hegemonia de soluções burguesas e pequeno-burguesas, como o indianismo, bolivarismo, o islamismo etc.
Essa profunda fragilidade subjetiva não será superada com discussão política ou reunificação de militantes, mas a partir de vitória objetiva e referencial, mesmo limitada, do mundo do trabalho. Porém, a ação consciente e organizada de vanguarda política, intimamente ligada ao movimento social, facilitaria certamente esse evento. Vanguarda dispersa e confusa devido à fragilidade subjetiva e objetiva do trabalho. A contra-revolução também é permanente.
CC: Existiria partido político no Brasil capaz de aglutinar as forças de esquerda em torno de plataforma política mínima inicial que defenda as camadas mais pobres? O PSOL satisfaria essa condição?
MM: A mobilização em defesa, no aqui e agora, dos direitos básicos dos mais explorados é eixo fundamental da ação do mundo do trabalho. Intervenção que deve ser deduzida dos sentidos profundos e necessidades estratégicas, para que signifique emancipação e não submissão. "Fome Zero", "políticas compensatórias", "cotas raciais" etc. constituem soluções imediatas aparentes que mantêm na miséria e na exploração multidões de necessitados. Impõe-se a construção de organização revolucionária que intervenha conjuntural e estrategicamente na defesa dos trabalhadores.
Creio que o PSOL jamais constituirá o núcleo organizador dessa organização. Ele nasceu sob a hegemonia de grupos parlamentaristas e colaboracionistas que cercearam, desde o início, ao igual que o PT, a proposta de gestão do partido pela militância nucleada. Os militantes revolucionários que nele se encontram concentram suas forças na oposição aos setores hegemônicos, que ditam a ação nacional e visível do partido, voltados à integração à sociedade de classe. O que permite que agreguem, a cada eleição, parlamentares, visibilidade e os enormes recursos públicos que denunciam sem deixar de embolsá-los. A esquerda termina desempenhando no PSOL o mesmo papel justificador e neutralizador que desempenhava no PT, no relativo à construção de um partido para os trabalhadores.
O PSTU é hoje a principal organização marxista-revolucionária do Brasil, com a canibalização do lambertismo e mandelismo pelo PT. Apesar dessa indiscutível vitória, jamais conseguiu superar o isolamento político-social. É tradicional a fragilidade política do PSTU que, na sua já muito longa vida – quase quarenta anos, desde a Liga Operária, fundada em 1972 –, jamais empreendeu leitura original da realidade brasileira, apoiado na visão morenista simplista de que o "Programa de transição" resolveu todas as questões do capitalismo contemporâneo.
O PSTU sobrevive como agrupamento estudantil e sindical que, para manter as posições conquistadas, começa a abandonar as políticas classistas – política de cotas; sindicalismo corporativista e vermelho etc. É igualmente forte o espírito de corpo nessa importante organização, através de auto-proclamação revolucionária e, agora, culto ao morenismo, realidades que dificultam sua interlocução com a sociedade e com a vanguarda social.
O PCB vive situação singular. Enquanto as organizações de esquerda deslizam gostosamente para a direita, ele coroou verdadeira evolução revolucionária, a partir de posições colaboracionistas. Com o programa de "reconstrução revolucionária", sancionada no recente 14º Congresso, em esforço intelectual denso, superou as propostas colaboracionistas, etapistas e frente-populistas do longo período stalinista e burocrático.
Nesse processo, serviu-se com honestidade e sem pejo do aparato categorial marxista-revolucionário – "revolução permanente"; "dualidade de poderes"; "programa de transição" etc. –, construiu reflexão sobre a formação social brasileira que permite sólida base para discussão horizontal com a esquerda marxista revolucionária. O que é, convenhamos, uma enorme novidade para a esquerda brasileira marxista. Porém, não conseguiu concretizar esse salto gigantesco, ao resgatar no mesmo congresso a ação das direções stalinistas e burocráticas mundiais, em negação indiscutível da crítica realizada no que se refere à estratégia e à formação social brasileira.
Um resgate de uma trajetória e tradição que talvez indique que sua direção compreenda a reunificação dos comunistas revolucionários como, sobretudo, repescagem dos grupos e dos militantes do velho PCB, que se reivindicam da revolução ainda fora do novo PCB. O que certamente terminaria ameaçando e esterilizando os históricos avanços programáticos obtidos, ao deixar entrar de contrabando e silenciosamente pela janela o que se lançou, a muito custo, oficialmente, pela porta.
CC: A campanha eleitoral poderia ter um papel nesse processo de construção partidária?
MM: A campanha eleitoral pode ser momento de discussão e ação conjunta, que enseje reunificação programática e, nesse processo, agrupamento organizacional, em patamar superior, através do rompimento da militância do PSOL com o colaboracionismo, da superação do autismo do PSTU e da impulsão de refundação revolucionária pelo PCB que não se esgote em uma simples auto-complacência.
Movimento que certamente incorporaria à militância organizada uma enorme quantidade de trabalhadores, intelectuais, populares, membros dos movimentos sociais, pequenas organizações revolucionárias, todos dispersos, desorganizados, confundidos, com escassa capacidade de intervenção e que mantêm como referência o mundo do trabalho, o socialismo, a revolução. Um quase sonho, não?
CC: A crítica de esquerda assinalou a desmobilização social a que o governo Lula induziu o movimento social, acorrentando-o às políticas assistencialistas e focalizadas. Porém, muitos acreditam que a eleição de um tucano conduziria o país a situação ainda mais crítica. Como vê esse debate?
MM: Trata-se como sempre da "política do mal menor". Na passada eleição, a defesa de que com Lula da Silva era ruim, mas com Alckmin pior, permitiu que movimentos sociais apoiassem a reeleição, com os resultados conhecidos: desemprego, subemprego, salários que seguem miseráveis; caos na Previdência, na saúde, na segurança; transferência de renda do trabalho ao capital; desassistência nas crises climáticas, epidemiológicas; interrupção da reforma agrária e ausência de reforma urbana; crescente alienação popular; desorganização dos movimentos sociais etc.
Porém, não creio que essa retórica conquiste consenso, sobretudo com Serra como candidato contra Dilma Rousseff e um vice do PMDB, possivelmente assustador! Em 2006, o capital liquidou as possibilidades de vitória da direita tradicional, apresentando o espanta-voto do Alckmin. A situação hoje é diversa. Serra foi homem de esquerda e mantém viés burguês-desenvolvimentista. Como, sobretudo, representante do grande capital industrial paulista, vai agitar questões capazes de atrair – com razão – parte da base governamental de esquerda e de centro-esquerda – luta contra os juros altos e o câmbio baixo, principalmente.
Se houve liquidação de candidatura, foi certamente a petista. Como Alckmin, por outras razões, Dilma é um verdadeiro Frankenstein eleitoral. É difícil encontrar político com menos carisma, capacidade de comunicação e raízes sociais do que a senhora ministra. E isso na era da televisão! Sem ser operação impossível, é aventura de altíssimo risco, para o PT. Mas certamente operação segura para Lula da Silva.
Ninguém me tira da cabeça que Lula da Silva propôs a Dilma para garantir, em caso de vitória ou derrota, sua volta triunfante em 2014. Um Tarso Genro ou um Ciro, com indiscutíveis maiores possibilidades de emplacar, tentariam bisar o mandato, lançando a possibilidade de nova candidatura de Lula para 2018, tempo politicamente já imprevisível. O interessante é a subserviência petista no relativo às decisões de Lula da Silva, que ameaça a nutritiva rapadura presidencial.
CC: Mediante uma correlação de forças adversas às classes trabalhadoras, como poderia, a seu ver, ser aberta a possibilidade de emergência de uma sociedade socialista no mundo e no Brasil? Que fatores poderiam apontar para uma linha otimista?
MM: A primeira onda da crise concluiu-se sem avanço dos trabalhadores, que terminaram pagando a conta. Não houve proposta do mundo do trabalho para a superação da crise, quando estavam dadas as melhores condições. O mesmo acontece com a crise climática, na qual o imediatismo intrínseco da acumulação capitalista liquidou com possibilidade de medidas mesmo paliativas e conjunturais, com os vetos peremptórios dos EUA e da China a qualquer medida efetiva.
O imperialismo estadunidense avançou indiscutivelmente no Iraque; conseguiu organizar importante oposição interna pró-burguesa e pró-imperialista no Irã, ajudada pelo fundamentalismo e conservadorismo governamentais; depôs Zelaya em Honduras; expandiu as bases militares na Colômbia, em comprovação de que já retornou à América Latina, onde fará igualmente sentir sua pressão exportadora em forma ainda mais forte nessa área privilegiada das exportações de mercadorias industrializadas produzidas no Brasil.
A oposição do governo Lula da Silva aos EUA nessas crises, sobretudo em Honduras e na Colômbia, em defesa dos enormes interesses nessas regiões dos segmentos exportadores nacionais de manufaturados – é precisamente ali onde o Brasil obtém seus maiores superávits comerciais com a venda de produtos industrializados –, mostrou-se inconseqüente.
Alemanha, França, Itália, Rússia e Israel são governados por conservadores. No Chile, a direita clássica prepara-se para vencer pelo voto popular, após longos anos de gestão social-liberal e democrático-cristã. Obama segue impondo sua política imperialista sob os aplausos mundiais.
Chávez, Evo Morales etc. propõem como único caminho para continuar suas revoluções uma nova reeleição. Prossegue e se acelera a restauração capitalista em Cuba, Vietnã e China. No Brasil, Lula da Silva é o presidente de maior consenso popular. A conjuntura nacional e mundial não está fácil, não deixando espaço para otimismo. Impõe-se, portanto, deixar de lado as ilusões de juventude, as intenções piedosas, os idealismos inconseqüentes, e cair na real, compreendendo que não há outra solução para as mazelas sociais e individuais que não as socialistas!
Mário Maestri, 61, é historiador.
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