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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Davos: o canto dos sereios

Arautos do conservadorismo tentam levar o Brasil ao rochedo do mar de ideias ortodoxas

Escrito por: Flávio Aguiar, Rede Brasil Atual

Leio, com algum espanto, na mídia brasileira, que os arautos do nosso pensamento conservador “descobriram” no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, que o Brasil e a América Latina são olhados com “admiração” ou “positivamente” em tal espaço internacional.
Em termos: Hugo Chavez, Evo Morales e Rafael Correa continuam a ser olhados através das lentes da severa restrição. Cuba não existe. Sobre Honduras, paira um resignado silêncio obsequioso. Notadamente porque a Embaixada dos EUA reconheceu/confirmou, através das revelações Wikileaks, que a deposição de Manuel Zelaya foi mesmo um golpe de estado.
O Brasil sai bem na foto porque é impossível ignorá-lo. Mas eu acrescentaria que por trás, ao lado, junto com essa admiração há uma aura de perplexidade. Como pode o Brasil “estar dando certo”, se ele não vem seguindo em nada o “nosso” receituário preferencial?
Então é necessário “enquadrá-lo”, ainda mais que o candidato ideal para esses atores globais perdeu. Não esqueçamos que Financial Times e The Economist (de Wall Street e do Vaticano nem vou falar) apoiaram José Serra.
Como enquadrá-lo? Através do tema do “ajuste fiscal” e do “gasto público”. Lendo-se as recomendações que emanam dos comentários positivos sobre o Brasil, vê-se que predominantemente falam em “contenção” – ajuste fiscal – e mais investimentos em “educação e infraestrutura”.
Paradoxo? Nem tanto. Pois sempre é possível tirar de um lugar para pôr em outro. O que importa é saber de onde para onde. Que o Brasil necessita de mais investimentos (públicos) em educação e infraestrutura, ninguém discute. Mas importa ver de onde virão esses recursos. Já não é de ontem que o FMI, por exemplo, junto com porta-vozes das finanças na mídia internacional, reclama que o Brasil deve conter a presença do Estado no mundo dos financiamentos e das finanças, por exemplo. Por ora, nos programas sociais, tipo Bolsa-Família, ninguém se arrisca tocar, a não ser pelo viés de que ele é necessário, mas não suficiente.
O Brasil preocupa o mundo das finanças internacionais. A China ajuda a moldar o mundo, hoje. A Índia cresce e certamente vai moldar a região. Com o Brasil é diferente. O Brasil ainda não tem cacife sequer (e espero que não tenha, e se tiver, que não o use) para “moldar a América do Sul”, por exemplo. Para "acomodá-la" e pacificar conflitos sim, e isso é bom.  Mas está adquirindo cacife – e rapidamente, e espero que continue – para ajudar a re-moldar o pensamento sobre economia, Estado, governança, graças ao seu tamanho, ao seu peso na economia mundial, às experiências ousadas que vem fazendo.
A Europa se dobrou de vez ao receituário ortodoxo: ajuste fiscal, “austeridade”, o que quer dizer basicamente corte nos investimentos sociais, retirar direitos dos trabalhadores, formação de um centro econômico revestido de hegemonia regional (Alemanha e um pouco a França) e de uma periferia que desse centro depende monetária e financeiramente. Isso é novo? Não. Novo é que esteja acontecendo na Europa, enquanto na América Latina – e no Brasil, em particular – outras coisas vão acontecendo.
O Brasil vai combinando distribuição de renda (mesmo que através preferencialmente do mecanismo das transferências) com crescimento econômico, contenção inflacionária com investimento público (em diferentes áreas sociais), aumento do emprego com volta da regulamentação trabalhista (carteira assinada e aumento real do salário mínimo), produção de energia com discussão (pelo menos) da preservação ambiental (e não me venham dizer que Europa e EUA são modelos nisso), e vai-se tornando uma potência econômica (ainda que de médio calibre) sem se tornar uma potência militar (o que não é, decididamente, o caso da China nem o da Índia).
Decididamente, o Brasil espanta. É preciso traze-lo para o aprisco novamente. Porque o que caracteriza o “establishment” reunido em Davos é a impermeabilidade das políticas nele e através dele implementadas ao mundo exterior, sequer mesmo às próprias discussões realizadas no seu Fórum Econômico Mundial. As belas palavras acabam cedendo, depois, à dura realidade das exigências do FMI, cuja visão permanece hegemônica nos centros da economia mundial. Como se vê pelo caso europeu, a receita não muda.
Somente Estados soberanos – que é o que o Brasil está ensaiando se tornar, junto com um país melhor organizado – conseguem romper com a ortodoxia, se quiserem.
Por isso os sereios de Davos – talvez agora com a concordância dos nossos arautos do conservadorismo – cantam para atraí-lo aos rochedos do naufrágio no mar das idéias ortodoxas. Que ótimo (parecem dizer) que o país esteja mudando – desde que o resultado da mudança seja entregue à orgia privatista no fim de contas. Porque, convenhamos, nenhuma discussão em Davos vai arranhar (embora se converse muito sobre isso) a soberania nos mercados financeiros. De novo: somente Estados soberanos podem faze-lo.
Só não esqueçamos de uma coisa: a julgar pelos muitos comentários ouvidos também à esquerda, no passado recente, e até hoje, o Brasil também não poderia estar no patamar em que está, e deveria ter naufragado há muito.
Deveriam, se isso fosse possível, os arautos e patrocinadores de Davos revisarem os seus princípios e conclusões?
Sim, não resta dúvida.
Nós, à esquerda, também.

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