Retirei do Blog Ronda dos Festivais do Jairo Reis e reproduzo aqui o artigo da antropóloga Fernanda Marcon sobre os 40 anos do movimento nativista do RS.
Fernanda Marcon
Antropóloga/UFSC
Não é à toa que toda cosmologia – do grego cosmo (mundo) e logos (estudo) – carrega consigo alguns “mitos de origem”. Bem entendido, o mito não consiste em um não-real, ou não-verdadeiro: é um relato específico e bastante dinâmico sobre o passado, mas também sobre o presente e futuro de uma sociedade. Seja ele científico, religioso, estético ou de outra natureza, está sempre a produzir significados que atuam diretamente sobre o imaginário de quem participa dessa sociedade. Além disso, como apontou Claude Lévi-Strauss (1955), os mitos não devem ser reduzidos a um “jogo gratuito ou uma forma grosseira de especulação filosófica”; não são formas arbitrárias, mas significativas. O significado que revelam estaria justamente em uma operação combinatória de elementos culturais, presente em diferentes sociedades, o que, para Lévi-Strauss, explicaria a semelhança entre os mitos de um extremo ao outro da terra.
Este prólogo serve-nos para pensar a constituição de eventos tão importantes para a música gaúcha ou gauchesca no sul do Brasil: os festivais nativistas. Como mito de origem, temos a saudosa história da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, inaugurada em 1971 e idealizada pelo poeta e compositor Colmar Duarte após o malogrado festival promovido por uma emissora de rádio de Uruguaiana: o “I Festival da Canção Popular da Fronteira”. A milonga “Abichornado”, de Colmar Duarte e Júlio Machado da Silva Filho foi eliminada pelo júri sob o argumento de que se tratava de uma “música gauchesca”. Descontente com tal resultado, Colmar Duarte decide criar um festival que promovesse exclusivamente a música regional. Para além das diferentes versões sobre o fato, o resultado do festival incitou sobremaneira a decisão de criar um evento no mesmo formato (um festival) que pudesse contemplar um estilo de música visto por Colmar Duarte como discriminado. É preciso notar que os idealizadores do festival também se posicionavam contra a música regional produzida até então no RS: a chamada música tradicionalista gaúcha, tendo em Teixeirinha, Zé Mendes e Pedro Raymundo seus principais ícones. Em sua perspectiva, a música regional gaúcha deveria passar por um processo de inovação estética, onde a qualidade musical fosse o principal objetivo. Não era lá um objetivo tão inovador, com o perdão do trocadilho. As querelas entre artistas e indústria cultural não são setentistas nem terminaram no século XXI: a chamada “tchê music” está aí para não nos deixar mentir. O espaço de legitimidade ocupado por diferentes gêneros musicais é sempre um lócus de disputas. Diferentes atores e interesses acionam argumentos a todo o momento. Se o primeiro festival intentava ou não ocupar o espaço que lhe considerava devido, sua participação mitológica na cosmologia nativista ainda reverbera em cada parque de exposições, em cada final de semana de festival. No entanto, pensando em uma perspectiva musical e, de minha parte, antropológica, para um fenômeno tão diverso e multifacetado, poderíamos refletir aqui sobre algumas dinâmicas contemporâneas que constituem a produção de música nativista – já nem tão restrita ao sul do Brasil -, e que se nem tanto inovadoras, constituem audições de mundo bastante interessantes.
Uma delas – que pude discutir com mais detalhe em minha dissertação de mestrado -, diz respeito aos gêneros musicais escolhidos pelos compositores nos festivais. De acordo com a etnomusicóloga Maria Elizabeth Lucas (1990), os gêneros de canção considerados tradicionais ou nativos nos festivais de música nativista correspondem a reinterpretações locais das danças de salão européias que invadem as Américas na metade do século XIX e que, no Rio Grande do Sul, substituíram ou foram incorporados às danças trazidas pelos colonizadores açorianos e luso-brasileiros no século XVIII. (Lucas, 1990: 211) No final do século XIX, entram em cena gêneros vindos da Argentina, Uruguai e Paraguai – ainda que, a princípio, utilizados timidamente por compositores locais e pouco executados nos bailes e fandangos do estado – como a milonga, o chamamé e a polca paraguaia e correntina.
A seleção de gêneros pelos compositores nativistas variou muito com o tempo. Na pesquisa realizada por Lucas nos anos 1980, a autora encontrou a predominância dos seguintes gêneros:
Um inventário dos gêneros musicais predominantes nos sete principais festivais que pesquisei em 1986-1987 mostrou que de um total de 216 canções, 53 eram milongas, 20 toadas, 19 canções, 16 valsas, 16 vaneira/vanerão, 13 chimarritas, 10 rancheiras, 9 mazurcas e chamamés, 7 chotes e 6 bugios (...) [tradução minha] (LUCAS, 1990: 228)
No levantamento que realizei durante a 16a e 17a Sapecada da Canção Nativa em Lages-SC, percebi a presença de outros gêneros platinos - para além da milonga e do chamamé que, desde os anos 1980 vêm sendo muito executados nos festivais. Das 64 canções classificadas para as duas edições do festival, 23 foram milongas, 14 chamamés, 7 chamarras, 3 canções, 3 rasguido-doble, 2 chotes, 2 vanerões, 2 polcas, 2 milonga-canção, 1 zamba, 1 chacarera, 1 toada e 1 milonga-candombe.
A predominância de milongas e chamamés torna-se um fato curioso na medida em que durante os primeiros festivais eram gêneros pouco privilegiados e, inclusive, não muito apreciados por jurados e comissões organizadoras. Santi (2004) analisa o regulamento da XXV Califórnia da Canção Nativa (1995), onde o artigo n. 15 proíbe expressamente gêneros como o chamamé, o tango, a zamba e a chacarera, considerando-os representantes de países e regiões vizinhas e não integrados à cultura musical sul-rio-grandense. (Santi, 2004: 86) E a milonga? Interessante notar como não é citada como um gênero não integrado à cultura musical do RS, e nisso o regulamento da Califórnia entra em acordo com a perspectiva dos folcloristas locais, como é o caso de Cezimbra Jacques:
[...] Espécie de música crioula platina, cantada ao som da guitarra (violão) e que está [...] adaptada entre a gauchada riograndense da fronteira. (JACQUES, 1979: 167)
Barbosa Lessa e Paixão Côrtes são ainda mais enfáticos ao incluir a milonga como um gênero folclórico do RS:
Marcante [...] foi a presença do ritmo milonga entre os cantadores de galpão, em praticamente todos os municípios fronteiriços desde Itaqui, na fronteira com a Argentina, até Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. [...] A milonga galponeira pode ser considerada uma expressão realmente folclórica tanto da Argentina como do Uruguai e do Rio Grande do Sul. (BARBOSA LESSA; PAIXÃO CÔRTES, 1975: 141)
Assim, as calorosas discussões a respeito da “aculturação” (termo utilizado pelo regulamento do festival Califórnia da Canção Nativa) promovida pelo chamamé não chegam à milonga, gênero que mais prosperou nos festivais nativistas.
O que estes aspectos podem nos dizer a respeito do mito de origem dos festivais nativistas? Muitas coisas, obviamente, mas, em particular, gostaria de assinalar a vitalidade desses 40 anos de intensa produção musical brasileira e sul-rio-grandense e sua capacidade especial de ultrapassar barreiras, limites estéticos e morais ao se renovar tantas vezes. Ao abraçar a música latino-americana, ao pilchar roqueiros e jazzistas em seus palcos, ao ser tão plural em sua ressonância no tempo.
Obras citadas no artigo:
Lessa, Barbosa. Nativismo: Um fenômeno social gaúcho. L&PM, Porto Alegre: 1985.
Lessa, Barbosa; Côrtes, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 2a Ed. Porto Alegre, 1975.
Lévi-Strauss, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
Lucas, Maria Elizabeth da Silva. Gauchos on Stage: Regionalism, Social Imagination and Tradition in the Festivals of Musica Nativa, Rio Grande do Sul, Brazil.
(Tese de Doutorado) The University of Texas, Austin, 1990.
Santi, Álvaro. Do Partenon à Califórnia: o nativismo e suas origens. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
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