por Izaías Almada
Segundo o jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, um manifesto foi lido à nação no Centro Acadêmico XI de Agosto nesta quarta-feira 22 de setembro. O documento vem assinado por várias personalidades do mundo jurídico, intelectual e artístico. Entre elas, para surpresa de muitos, por Hélio Bicudo e Dom Paulo Evaristo Arns. Vamos ao documento:
“MANIFESTO EM DEFESA DA DEMOCRACIA
“Em uma democracia, nenhum dos Poderes é soberano.
“Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.
“Acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático. Hoje, no Brasil, os inconformados com a democracia representativa se organizam no governo para solapar o regime democrático.
“É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais.
“É inaceitável que a militância partidária tenha convertido os órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos.
“É lamentável que o Presidente esconda no governo que vemos o governo que não vemos, no qual as relações de compadrio e da fisiologia, quando não escandalosamente familiares, arbitram os altos interesses do país, negando-se a qualquer controle.
“É inconcebível que uma das mais importantes democracias do mundo seja assombrada por uma forma de autoritarismo hipócrita, que, na certeza da impunidade, já não se preocupa mais nem mesmo em fingir honestidade.
“É constrangedor que o Presidente da República não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há “depois do expediente” para um Chefe de Estado. É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa manifestação escancarada de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura. Ele não vê no “outro” um adversário que deve ser vencido segundo regras da Democracia, mas um inimigo que tem de ser eliminado.
“É aviltante que o governo estimule e financie a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses.
“É repugnante que essa mesma máquina oficial de publicidade tenha sido mobilizada para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.
“É um insulto à República que o Poder Legislativo seja tratado como mera extensão do Executivo, explicitando o intento de encabrestar o Senado. É um escárnio que o mesmo Presidente lamente publicamente o fato de ter de se submeter às decisões do Poder Judiciário.
“Cumpre-nos, pois, combater essa visão regressiva do processo político, que supõe que o poder conquistado nas urnas ou a popularidade de um líder lhe conferem licença para rasgar a Constituição e as leis. Propomos uma firme mobilização em favor de sua preservação, repudiando a ação daqueles que hoje usam de subterfúgios para solapá-las. É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo.
“Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade.
“Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos.”
Uma leitura atenta ao manifesto faz saltar, em primeiro lugar, que seu enunciado não condiz com a qualificação intelectual e o espírito democrático de muitos dos seus signatários. Defende-se a democracia através da intolerância. Mas isso é o de menos… O que se quer, na verdade, é desqualificar o presidente do melhor governo do Brasil nos últimos anos. O que se quer é criar um clima de apreensão e instabilidade política, sob a falsa alegação de que a imprensa, um dos pilares da democracia, está sob a ameaça de um governo e de um partido.
Vamos pinçar algumas das colocações do documento e tentar entendê-las e refutá-las à luz desse novo Brasil que encerra a primeira década do século XXI.
“Em uma democracia, nenhum dos Poderes é soberano.”
De fato: em uma democracia o poder soberano é do povo.
“Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.”
Falácia: uma Constituição nem sempre abrange os direitos e deveres de todos os cidadãos de um país. Por suas falhas, muitas delas são refeitas através de Assembléias Constituintes.
“Acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático. Hoje, no Brasil, os inconformados com a democracia representativa se organizam no governo para solapar o regime democrático.”
Não existe uma forma ideal e acabada de democracia. Enquanto governo do povo, a democracia deverá atender aos interesses da maioria sem anular os interesses das minorias e poderá ser direta, como na Antiga Grécia onde nasceu, representativa ou mesmo participativa. Engessar a democracia num único conceito é, no mínimo, um estelionato intelectual. Mas prossigamos…
Esgotados em três breves parágrafos aquilo que os autores consideram os valores que sustentam a sua democracia representativa, o documento descamba de sua frágil defesa de princípios para as mesmas acusações de vários órgãos de imprensa, hoje transformados em partidos políticos, revelando assim a fonte “ideológica” de seu patriotismo e fervor democrático. Senão, vejamos:
“É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais.
“É inaceitável que a militância partidária tenha convertido os órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos.”
A partir da falsa premissa de que só existe um tipo de democracia o manifesto apela para o uso indiscriminado e intencional de adjetivos com o objetivo de dramatizar uma realidade criada por manchetes de jornais, revistas e telejornais: é intolerável, lamentável, inaceitável, inconcebível, constrangedor, aviltante, repugnante, insultuoso…
É a adjetivação da intolerância, adjetivação dos que defendem o pensamento único, tão recorrente aos espíritos antidemocráticos, o que só faz revelar o paradoxo do documento, ou melhor, revelar as suas reais intenções de um documento de apoio eleitoral a um candidato comprometido com o atraso, com o denuncismo gratuito, com uma política econômica neoliberal, entreguista e na contramão de um país que vai se transformando em um país soberano e dono do seu nariz.
E por último, desnudando a verdadeira intenção, o manifesto faz a apologia do golpe de estado:
“Cumpre-nos, pois, combater essa visão regressiva do processo político, que supõe que o poder conquistado nas urnas ou a popularidade de um líder lhe conferem licença para rasgar a Constituição e as leis. Propomos uma firme mobilização em favor de sua preservação, repudiando a ação daqueles que hoje usam de subterfúgios para solapá-las. É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo.
“Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade.”
Reparem na construção: “supõe que o poder conquistado nas urnas” (mas não é esse o princípio da democracia?) confere ao presidente “licença para rasgar a Constituição e as leis” (Quando? Como? Onde?). “É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo” (sic) De que maneira?
“E erguer a voz em defesa da LEGALIDADE!” A legalidade que escorre pelo esgoto dos jornais, das revistas e televisões?
Querem fazer pouco da inteligência do povo brasileiro. Documentos e manifestos como esse deram voz e pretexto para o golpe de 1964. Não insultem a memória daqueles que lutaram contra a ditadura, porque dessa vez NÃO PASSARÃO!
Izaías Almada é escritor, dramaturgo e roteirista cinematográfico, É autor, entre outros, dos livros TEATRO DE ARENA, UMA ESTÉTICA DE RESISTÊNCIA, da Boitempo Editorial e VENEZUELA POVO E FORÇAS ARMADAS, Editora Caros Amigos.
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