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terça-feira, 18 de novembro de 2008

Da liberdade dos movimentos populares aos movimentos por sua liberdade

O jurista Jacques Távora Alfonsin comenta sobre a política do governo estadual contra os movimentos sociais. "Mesmo acuados por essa violência “oficial” do Estado, todavia, os movimentos populares gaúchos não abrem mão das suas liberdades e exercem um outro tipo de autoridade, predominantemente moral, diferente daquela que exerce um poder de pura dominação", diz. Material para veículo impresso ou para leitura. JACQUES TÁVORA ALFONSIN Quando se diz que o monopólio da Justiça deve ser garantido pelo Estado, não raro se esquece de acrescentar que um dos meios para se alcançar essa relevante finalidade é o uso constitucional da violência. Na conjuntura atual do Rio Grande do Sul, o monopólio da Justiça está literalmente suspenso pelo da violência, dela inteiramene desvinculada, da forma mais ilegítima, inconstitucional e ilegal. Com espaço quase diário na mídia gaúcha, o atual comandante da Brigada Militar tem “explicado” (?) a truculência com que age na repressão que entende apropriada contra protestos públicos de movimentos sociais, com a afirmação de que “delinquente é delinquente”. Estende sobre todas essas multidões que se reúnem para reivindicar seus direitos, uma acusação sem prova, um processo sem defesa e uma “sentença” inapelável. Arvora-se, não só em instrutor de um processo próprio, como de juiz e oficial de justiça que executa suas ordens. Em resposta a um artigo publicado no jornal Zero Hora, que criticou o seu modo de conduzir a polícia militar sob seu comando, publicou um artigo na edição de 28 de outubro bastante revelador. As/os sem-teto, as/os sem-terra, as/os bancárias/os, as/os estudantes, as/os professoras/es, as/os trabalhadoras/es que participaram da “marcha dos sem”, as mulheres agricultoras que ainda estão curando as feridas que receberam na execução das suas ordens, estão perplexas/os diante do que ele afirma no tal artigo. Multidões que apanharam do modo o mais brutal e estúpido, agora ouvem que a BM se mobiliza, exatamente, em defesa dessas manifestações de protesto popular. Proclamando-se corajoso, afirma o comandante não ter medo, concluindo seu artigo com advertências e promessas implicitamente ameaçadoras. As vítimas desse abuso de poder, porém, a se julgar pela perseverança com que prosseguem se concentrando nos espaços públicos que lhe são franqueados pela própria Constituição Federal, demonstram muito mais coragem, e com uma diferença notável. A coragem delas não se baseia na força física das armas letais e de intimidação com que têm sido reiterada e covardemente agredidas pela polícia militar do Estado. A defesa delas é de outra natureza. Não portam escudos, fuzis, bombas de gás. Estão armadas de dignidade humana, consciência de cidadania, amor à verdade, à justiça e aos direitos, especialmente os humanos fundamentais sociais. Aí se encontram valores libertários, emancipatórios, que não manipulam a interpretação da Constituição Federal em proveito de uma pseudo segurança social, usada para garantir, à força, os privilégios dos poderes públicos e privados que, no Rio Grande do Sul, preservam a injustiça social. Em “Ética e Direito”, Chaim Perelman fornece resposta convincente à doutrina que o comandante da BM invoca, no artigo que publicou, em favor da sua conduta: “A autoridade se apresenta sempre com um aspecto normativo, é o que deve ser seguido ou obedecido. Tal como a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão ou da experiência. Com efeito, aquele que possui o poder sem a autoridade, pode forçar a submissão, mas não o respeito” (p. 330). Os poderes constituídos, encarregados de dirigir uma comunidade politicamente organizada, seriam bem pouco eficazes se devessem contar apenas com a força para se fazer obedecer. É essencial, para o exercício do poder, que sua legitimidade seja reconhecida, que ele usufrua uma autoridade que angarie o consentimento geral daqueles que lhe são sujeitos” (p. 335). Para pesar, pois, do comando da Brigada Militar gaúcha, o poder que ele está usando contra o povo carece dessa legitimidade. Mesmo assim, a sua “legalidade” (?), que buscou apoio num inquérito secreto (!) urdido pelo Ministério Público contra um dos movimentos populares gaúchos (o MST), já rendeu quatro ações civis públicas ajuizadas pelo mesmo Órgão, com quatro liminares já deferidas em tempo recorde e uma delas, por sinal, já confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado. Nenhuma das inconstitucionalidades invocadas pelos integrantes daquele Movimento, entre as quais figuravam o direito à liberdade de se associarem e de se reunirem, o direito à liberdade de ir e vir, protegido constitucionalmente até pelo habeas corpus, o direito à liberdade de manifestarem suas opiniões, o direito de se defenderem em qualquer processo administrativo ou judicial, foram, sequer, lembradas nem pelos arrazoados do Ministério Público, nem pelo julgamento do recurso interposto contra uma das tais liminares. A violência abusiva, ilegal, inconstitucional e injusta que ora se abate sobre os movimentos populares do Rio Grande do Sul, com esse poderoso reforço, está contando agora com o aplauso entusiástico e interesseiro do poder econômico privado, que sempre foi o grande beneficiário desse tipo de “segurança”. Mesmo acuados por essa violência “oficial” do Estado, todavia, os movimentos populares gaúchos não abrem mão das suas liberdades e contam, para apoiá-las, com lições e testemunhos de gente muito boa, mestres da vida, que exercem um outro tipo de autoridade, predominantemente moral, diferente daquela que exerce um poder de pura dominação, esquecendo que a legitimidade de qualquer poder público, só merece respeito na medida em que está a serviço incontestável do povo: O liberalismo como posição filosófica, com todas as ramificações conhecidas - liberalismo econômico, político, moral, religioso etc. - coloca a liberdade como valor supremo, sem distinguir entre liberdade de opção e liberdade de superação. A liberdade de opção, que nos permite escolher entre um caminho e outro sem estabelecer entre eles qualquer hierarquia de valores, é apenas um momento inicial no desenvolvimento deste poder, que vai gradativamente distinguindo a matéria viva da matéria inanimada, os seres superiores dos seres inferiores. A hierarquia dos valores, no seio de sua própria natureza, já se faz pelo próprio acréscimo do poder de deliberação. Mas a liberdade de opção no mesmo nível, sem distinguir valores senão pelo capricho das nossas tendências, é um momento inferior da liberdade. (...) A liberdade de superação não se limita a escolher sem injunções de necessidade, mas também sem injunção de valores, como faz a liberdade de opção.¹ Os Poderes Públicos do Rio Grande do Sul, como se observa, precisam vacinar a sua liberdade de opção contra o vírus do seu preconceito atual, que confunde segurança pública com perseguição violenta de movimentos populares que estão sofrendo, justamente, de violações históricas dos seus direitos à liberdade de superação. Superação da fome, da falta de teto, de educação, saúde, e de outros direitos humanos fundamentais sociais. Agindo da forma inconstitucional e ilegal com que estão agindo desmoralizam o monopólio da justiça que está a seu cargo, não deixando saída para o povo que não seja a da resistência: Atingir-se-á o “ponto do não direito” quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado e os princípios de justiça (liberdade, igualdade, dignidade da pessoa humana) se revele de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a justiça e o direito - o direito de resistência, individual e coletivo” .² Em lugar de respeito, portanto, devido às autoridades públicas, o que mais lhes serve de réplica, na situação atual do Rio Grande do Sul, é a indignação ética da resistência popular que, mesmo diante da brutalidade e da estupidez com que está sendo reprimida, vai prosseguir defendendo o seu poder constituinte. Um tal poder soberano, conforme o primeiro artigo da nossa Constituição reconhece, em vez de morrer pela mão do poder constituído, é esse que somente se justifica na medida em que é fiel àquele. Tiradentes, o patrono das polícias militares brasileiras, entre muitos outros mártires do arbítrio e da prepotência no Brasil, cuja memória está sendo novamente enforcada neste Estado, que o diga. 1 Meditação sobre o mundo moderno. Rio de janeiro: Agir, 1955, p. 15/16 2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva Publicações Ltda. 1999, p. 14. Jacques Távora Alfonsin é jurista e procurador da República aposentado.

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