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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A muralha egípcia

2/1/2010, Uri Avnery,Gush Shalom [Grupo da Paz, Israel] Estranho, quase bizarro, o que está acontecendo no Egito. Cerca de 1.400 ativistas vindos de todo o mundo reuniram-se ali, a caminho para a Faixa de Gaza. No momento em que se completa um ano da guerra “Chumbo Derretido”, o objetivo deles era participar de uma demonstração pacífica contra o bloqueio econômico, que torna insuportável a vida para 1,5 milhão de habitantes da Faixa. Ao mesmo tempo, estavam planejadas manifestações em vários países, também em Telavive. O “comitê de monitoramento” dos cidadãos árabes de Israel também deveria organizar um evento na fronteira de Gaza. Quando os ativistas estrangeiros chegaram ao Egito, uma surpresa os aguardava. O governo egípcio proibiu que prosseguissem viagem para Gaza. Os ônibus foram retidos nos arredores do Cairo e forçados a dar meia volta. Manifestantes que viajavam separadamente, e que conseguiram chegar ao Sinai em ônibus regulares, foram retirados dos ônibus. As forças egípcias de segurança puseram-se à caça dos ativistas, onde estivessem. Os manifestantes viajantes, zangados, cercaram suas respectivas embaixadas no Cairo. Na rua em frente à embaixada da França, surgiu uma barraca, imediatamente cercada pela Polícia egípcia. Os manifestantes norte-americanos reuniram-se em frente à embaixada dos EUA e exigiram que o Embaixador os recebesse. Manifestantes mais idosos, alguns com mais de 70 anos, iniciaram uma greve de fome. Por toda a cidade, a polícia caçava manifestantes, as unidades de elite paramentadas com todo o equipamento para controle de tumultos urbanos, enquanto canhões de água pintados de vermelho lhes davam cobertura. Os manifestantes e protestantes que tentaram reunir-se na praça Tahrir (libertação), no centro do Cairo, foram obrigados a dispersar. No fim, depois de reunião com a esposa do presidente do Egito, chegou-se a uma típica solução à moda egípcia: 100 ativistas foram autorizados a viajar para Gaza; os demais foram obrigados a permanecer no Egito, frustrados e sem entender o que acontecera. ENQUANTO os manifestantes esfriavam os motores na capital do Egito, tentando encontrar vias de escape para a frustração e a ira, Binyamin Netanyahu era recebido no palácio presidencial, no coração do Cairo. O anfitrião não poupou elogios à contribuição de Netanyahu à paz, sobretudo pelo “congelamento” das construções na Cisjordânia – gesto apenas encenado, jamais executado, que não inclui Jerusalém Leste. Hosni Mubarak e Netanyahu já se encontraram antes – mas não no Cairo. O presidente egípcio sempre fez questão de que os encontros acontecessem em Sharm-al-Sheikh, o mais longe possível de grandes cidades e, portanto, de grandes concentrações de população egípcia. O convite para vir ao Cairo foi, portanto, significativo sinal de que as relações entre Israel e Egito estreitaram-se. Como presente especial a Netanyahu, Mubarak permitiu que centenas de israelenses viessem ao Egito para rezar junto ao túmulo do rabino Yaakov Abu-Hatzeira, que morreu quando em viagem do Marrocos à Terra Santa, há 130 anos, na cidade egípcia de Damanhur, e lá está enterrado. Há algo de simbólico, nesses movimentos: ao mesmo tempo em que os manifestantes pró-palestinos são barrados a caminho para Gaza, os israelenses são convidados para visitar Damanhur. Que participação, pode-se pensar, teria o Egito no bloqueio da Faixa de Gaza? O bloqueio começou muito antes da Guerra de Gaza e transformou a Faixa no que já foi bem descrito como “a maior prisão a céu aberto, do mundo”. O bloqueio cobre tudo, exceto remédios essenciais e o mais básico da alimentação. O senador John Kerry, candidato à presidência dos EUA nas últimas eleições, ficou chocado ao saber que o bloqueio inclui macarrão – o exército de Israel, em sua infinita sabedoria, decretou que macarrão seria alimento de luxo. O bloqueio pesa sobre tudo – de materiais de construção a cadernos e livros escolares. Senão em caso de extrema necessidade de saúde, ninguém pode passar da Faixa de Gaza para Israel ou Cisjordânia, nem sair de lá para Israel. Mas Israel só controla três fronteiras da Faixa. As fronteiras norte e leste são bloqueadas pelo exército; e a fronteira oeste, pela marinha israelenses. A quarta, a fronteira sul, é controlada pelo Egito. Portanto, não haveria bloqueio algum sem a participação do Egito. Muito clara e visivelmente, nada disso faz sentido. O Egito considera-se líder do mundo árabe. É o mais populoso dos países árabes, situado no centro do mundo árabe. Há 50 anos, o presidente do Egito, Gamal Abd-al-Nasser, era ídolo de todos os árabes, sobretudo dos palestinos. Como é possível que o Egito colabore com “o inimigo sionista” (como os egípcios, há 50 anos, referiam-se a Israel) , para a humilhação e a desgraça de 1,5 milhão de irmãos árabes? Até recentemente, o governo egípcio sobrevivia agarrado a uma solução que é bom exemplo de 6 mil anos da vivência política dos egípcios: colaborava para a efetividade do bloqueio... mas fechava os olhos para as centenas de túneis que atravessam a fronteira Egito-Gaza, através dos quais jamais se deteve o fluxo de alimentos para a população de Gaza (a preços exorbitantes, com altos lucros para os comerciantes egípcios); e além da comida, também sempre passaram armas, pelos túneis. E muita gente também sempre usou os túneis, nas duas direções: de ativistas do Hamás, a noivas. Isso, agora, mudou. O Egito começou a construir uma muralha de ferro – literalmente – ao longo de toda a fronteira de Gaza. São gigantescos blocos que penetram no solo – porque visam a bloquear todos os túneis. E isso, finalmente, chocou os cidadãos egípcios. Quando o mais extremo sionista, Vladimir Ze’ev Jabotinsky, escreveu, há 80 anos, sobre erigir uma “Muralha de Ferro” contra os palestinos, nunca lhe passou pela cabeça que viesse a ser construída por árabes. POR QUE, afinal, os egípcios fazem o que fazem hoje? Há várias explicações. Os mais cínicos lembram que o governo do Egito recebe generoso subsídio anual dos EUA – quase dois bilhões de dólares – cortesia de Israel. Começou como recompensa pelo tratado de paz entre egípcios e israelenses. O lobby pró-Israel que manda no Congresso dos EUA pode, a qualquer momento, suspender o brinde. Para outros, Mubarak tem medo do Hamás. A organização nasceu como braço palestino da Fraternidade Muçulmana, grupo que ainda é a principal força de oposição à ditadura de Mubarak. O eixo Cairo-Riad-Amã-Ramallah opõe-se ao eixo Damasco-Gaza, aliado do eixo Teerã-Hizbollah. Para muitos, Mahmoud Abbas tem interesse em apertar cada vez mais o bloqueio de Gaza, na esperança de enfraquecer o Hamas. O Hamás recusa-se a dançar pela música de Mubarak, e Mubarak não gosta disso. Como seus antecessores, exige que os palestinos lhe prestem obediência. O presidente Abd-al-Nasser nunca engoliu a transformação pela qual passou a OLP – organização criada por ele para assegurar o controle egípcio sobre os palestinos, e que lhe escapou das mãos quando Yasser Arafat assumiu o poder. Adiante, Anwar Sadat irritou-se com a OLP, por ter rejeitado o acordo de Camp David, que só prometia ‘autonomia’ aos palestinos. Como atreviam-se os palestinos, pobres e oprimidos, a rejeitar os “conselhos” do Big Brother? Todas essas explicações fazem sentido, mas, mesmo assim, a atitude do governo egípcio causa surpresa e escândalo. O bloqueio egípcio contra Gaza está destruindo a vida de 1,5 milhão de seres humanos, homens e mulheres, velhos e crianças, a maioria dos quais evidentemente não são ativistas do Hamas. A muralha está sendo construída ante os olhos de centenas de milhões de árabes, de 1,25 bilhão de muçulmanos. No próprio Egito, milhões de cidadãos envergonham-se de ver o país colaborando para matar de fome irmãos árabes. É política arriscadíssima para Mubarak. Por que, afinal, teria adotado essa via? A VERDADEIRA RESPOSTA pode ser que Mubarak, muito provavelmente, não teve escolha. O Egito é país orgulhoso da própria dignidade. Há algumas semanas, ao perder um jogo de futebol para a Argélia, os egípcios choraram como se tivessem perdido uma guerra. “Lembrem que, do alto dessas pirâmides, 40 séculos vos contemplam”, disse Napoleão aos seus soldados, na véspera da batalha pelo Cairo. Cada egípcio sente que 6.000 – há quem insista em 8.000 – anos de história estão sempre a contemplá-lo. Esse sentimento profundo muitas vezes entra em choque com a realidade, sobretudo quando a posição do Egito enfraquece dia a dia. A Arábia Saudita é país mais influente que o Egito; até o minúsculo Dubai converteu-se em centro das finanças mundiais; o Irã, não o Egito, vai-se convertendo em centro de poder regional. Ao contrário do Irã, onde os aiatolás implantaram política de controle de natalidade e limitaram a dois o número de filhos por família, a taxa de natalidade no Egito vem devorando tudo e condenando o país a viver em estado de miséria permanente. No passado, o Egito sempre conseguiu compensar as fraquezas internas com os sucessos externos. O mundo foi persuadido de que o Egito seria o país líder do mundo árabe e tratou-o nesses termos. Tudo isso acabou. O Egito está em péssima situação. Mubarak foi obrigado a obedecer ao que os EUA – de fato, Israel – mandou-o fazer. Essa é a real explicação para a participação do Egito no bloqueio de Gaza. A muralha da morte – como é chamada entre os palestinos – é mais um passo do mesmo processo de participação crescente, do Egito, no bloqueio contra Gaza. QUANDO FALEI hoje, na manifestação em Telavive, depois de termos andado em passeata pela cidade, contra o bloqueio, fiz questão de não falar da participação dos egípcios. Sempre admiro os egípcios com os quais encontro em minhas visitas ao país. O ‘homem das ruas’ é caloroso e acolhedor. Há neles uma enorme tranquilidade, ausência de qualquer emoção agressiva, aquele tão especial senso de humor dos egípcios! Até os mais pobres lutam para viver com dignidade, nos bairros superpopulosos e quase sempre em condições tão difíceis. Nunca ouvi lamentos. Em milhares de anos de história, os egípcios só se levantaram em revolta três, talvez quatro vezes. Essa legendária paciência também tem um lado obscuro. Povos que se resignem podem perder o ânimo necessário para construir o próprio progresso social, econômico, político. A impressão que se tem é de que os egípcios aceitam tudo, qualquer violência. Dos faraós do passado aos faraós do presente, jamais houve movimento forte de oposição no Egito. Até que, um dia, o orgulho nacional ou a miséria derrotem também essa paciência. Como israelense, protesto contra o bloqueio de Israel contra Gaza. Se fosse egípcio, protestaria contra o bloqueio do Egito contra Gaza. Como cidadão desse planeta, protesto contra ambos.

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