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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Egon Heck: há 40 anos na universidade dos índios

É impossível separar a vida de Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, regional do Mato Grosso do Sul, da causa indígena brasileira. Ele não é índio, mas compartilha dos mesmos sentimentos, da vontade de viver em uma sociedade que respeita as diferenças, aprende com a espiritualidade e sonha com justiça social. “Sonho sem ilusão, mas é sonho e tem de ser sempre sonho”. Egon Heck foi padre durante 12 anos e hoje é missionário leigo. Engajado com as comunidades indígenas desde a juventude, adotou esta causa como parte integral de sua própria vida e diz com orgulho e firmeza que este “é um motivo que vale a vida, vale a morte”. Em visita ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 07-10-2010, quando participou do evento Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani, pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade, ele nos motivou a pensar que outro mundo é possível. Confira.

Por: Patrícia Fachin

IHU On-Line – Onde o senhor nasceu? Pode nos contar sobre as suas origens?
Egon Heck – Nasci no Rio Grande do Sul, no município de Cândido Godói, na região missioneira do Alto Uruguai. Meus pais, dentro da onda migratória dos gaúchos que foram do extremo sul para o extremo norte do país levando a perspectiva de um modelo de desenvolvimento de país, migraram para o oeste de Santa Catarina. Nesse contexto, de trabalho na agricultura, se desenvolveu a perspectiva da minha educação escolar, a qual está ligada à formação religiosa: estudei em seminários e internatos. 
Com algumas possibilidades de rebeldia, a partir do senso crítico e de mudança desencadeados pelo Concílio Vaticano II, fui aderindo às renovações que se deram na década de 1960 e 1970. Em 1967, fiz parte do movimento contra a Ditadura. Na época, os estudantes tinham uma força bastante articulada e eu participei do DCE, do Movimento Estudantil Universitário.


IHU On-Line – Foi neste momento que o senhor teve contato e conhecimento da causa indígena? 
Egon Heck – No início dos anos 1970, comecei a conhecer a questão indígena. Alguns colegas haviam criado, em 1968, a Operação Anchieta , que era uma organização de apoio ao trabalho junto aos povos indígenas a partir da inserção de leigos no trabalho missionário junto aos índios, principalmente na Prelazia de Diamantino , que, na época, era a principal região de atuação dos jesuítas com os índios. Envolvi-me nesse trabalho, interrompi os estudos e fiquei um ano em Rondônia, em 1972, quando foi criado o Conselho Indigenista Missionário – Cimi. Concluí o segundo e o terceiro ano de Teologia na PUCRS. Quando voltei à Chapecó-SC, como padre, conversei com o bispo Dom José Gomes , que foi muito sensível ao destinar dois padres para se dedicarem à questão indígena. Nesta época, comecei a estruturar o Cimi na região Sul a partir de Santa Catarina. Todo o trabalho com os guarani do Rio Grande do Sul até os do Espírito Santo foi sensibilizado a partir da Igreja. Até então, o pensamento que prevalecia na Igreja Católica era o de que a questão dos índios era um problema do Estado. Ajudamos a romper essa mentalidade, a sensibilizar as igrejas locais, que começaram a se solidarizar aos indígenas. Em 1969, trabalhei na prelazia de Tefé, que fica no Alto Solimões. Nessa região permaneci por cinco anos e, depois, fui secretário do Cimi, em Brasília. Mais tarde, voltei para a Amazônia e entre 1999 e 2003 fui, novamente, secretário do Cimi, em Brasília. Hoje, atuo no Cimi do Mato Grosso do Sul.

IHU On-Line – Como sua família reagiu diante dessa opção?
Egon Heck – Venho de uma família de descendentes europeus, que carregam uma carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas. Eles eram alimentados pela ideologia de que o trabalho é fundamental e, por isso, é necessário trabalhar 12, 15 horas por dia para produzir o máximo e se desenvolver. Aos poucos conseguimos romper com essa origem histórica que se desenvolveu ao longo dos anos. Minha família nunca foi contra meu trabalho. Depois de praticamente 40 anos de atividade, eles aprenderam a aceitar mais a questão indígena como uma realidade diferenciada. Eles sempre me estimularam a ir bem no trabalho, embora nem sempre tivessem compreensão exata das implicâncias de uma sociedade diferente, plural, baseada no diálogo das culturas. O governo militar propunha que o Brasil precisava ser uma força hegemônica no continente e para isso, todos deveriam ser iguais, pois a diversidade enfraquecia o país. Esse pensamento já faz parte do passado. Fui me desenvolvendo nesse contexto.

IHU On-Line – Como a questão indígena se relaciona com a sua vida pessoal?
Egon Heck – Quando perguntam qual é a minha profissão, levo um susto. Em geral, digo que sou professor. Imediatamente vem a pergunta: Leciona onde? E eu digo: Não leciono, só aprendo; estou há 40 anos na universidade dos índios. Tive a felicidade de ter uma convivência mais próxima com a realidade indígena e, com ela, amadurecer.
Amadureci a questão central: na encruzilhada dos processos civilizatórios, os povos indígenas entram em pauta não pelas suas grandes conquistas, mas a partir de suas propostas de alternativas de vida e possibilidades de relação com a Terra, o planeta. Diante da inviabilidade do sistema vigente, eles se apresentam como uma possibilidade de contribuição de uma visão de mundo diferente. É gratificante estar com eles e poder dizer, com convicção e de coração, que eles trazem essa convicção de um mundo melhor, embora sejam obrigados a abdicar de sua própria identidade diante das pressões e violências às quais são submetidos.
 
Eles resistiram, estão resistindo. Como dizem: “Passaram 500 anos, agora vamos para os próximos 500”. Estão confiantes de que haverá mudanças profundas nas relações políticas, econômicas e sociais no mundo. Espero que a comunidade tenha essa capacidade, a partir dos povos, da sabedoria, da espiritualidade, das diversas formas de vida, de dar a volta e repor o caminho da humanidade com outros valores. Sinto-me junto e ao lado dos povos indígenas como batalhador por essas mudanças.


IHU On-Line – Como é sua rotina no Mato Grosso do Sul? Tem acesso às comunidades indígenas, conversa com os índios?
Egon Heck – No Mato Grosso do Sul, a convivência direta com eles é complicada em função da situação de confinamento em que eles se encontram. As estratégias de apoio a eles são um pouco diferenciadas do ponto de vista de contatos, visitas e apoio às mobilizações. O ideal desenvolvido no Cimi, que era a questão da encarnação das comunidades, estar com eles, ser um deles, foi ficando difícil. Os próprios povos indígenas não querem que os brancos morem com eles; querem apoio, diálogo; todavia, para isso, não há necessidade de entrar na terra deles.

IHU On-Line – E por que esse posicionamento? É uma preservação da cultura indígena? 
Egon Heck – Muitas vezes é uma situação de autodefesa. Havia acusações de que os índios são incapazes e de que os não-índios estão “fazendo a cabeça” deles. Então, para estar isentos disso, eles procuraram manter uma certa distância. Isso não acontece com todos, tanto que alguns missionários moram nas aldeias. Mas, cada vez mais, o próprio processo do movimento indígena e a nossa opção por defender os seus direitos e suas vidas nos levam a nos questionar e nos reposicionar criticamente em relação às formas de relação e de presença. 
Houve épocas em que o governo e a Funai proibiram o Cimi de estar nas aldeias; outras, em que os índios acharam que era melhor que nós não estivéssemos nas comunidades; momentos em que o Cimi achou que seria mais frutífera a participação não-presente nas terras indígenas, mas trabalhando a questão na sociedade. Cada período histórico exigiu um reposicionamento em relação às formas de presença solidária e radical, mas nem sempre no mesmo espaço físico.


IHU On-Line – O senhor se sente parte da comunidade indígena?
Egon Heck – Sinto-me partilhando dos projetos indígenas, da utopia indígena de sociedades que consigam ultrapassar esse patamar de dominação, impactos e destruição em curso. Assumi esse projeto de vida.

IHU On-Line – O senhor já recebeu ameaças de morte em função do seu trabalho?
Egon Heck – Na década de 1970, recebi os famosos bilhetinhos do CCC – Comando de Cassa Comunista, que diziam que, caso continuasse com esse trabalho, seria eliminado. A visão solidária em termos da CNBB, dos movimentos sociais, de alguns setores da mídia, ajudam a dar uma cobertura e garantia de que essas tragédias não aconteçam.

IHU On-Line – O senhor tem medo de morrer?
Egon Heck – Não. A causa, para mim, é um motivo que vale a vida, vale a morte. Cada vez mais, me sinto comprometido com essa causa, que é uma causa de vida e que exige uma decisão radical, sem temores e sem medo. Sinto-me tranquilo.

IHU On-Line – Como foi, para o senhor, viver o período da Ditadura Militar? 
Egon Heck – Vivemos momentos de temor porque a realidade era muito dura. Por ajudar os índios a participarem de reuniões, fui ameaçado com arma por chefes de postos da Funai. Temia a brutalidade do sistema implantando, que não tinha grandes remorsos em eliminar pessoas.

IHU On-Line – Nos momentos de lazer, o que gosta de fazer? 
Egon Heck – Gosto de trabalhar na terra. Nos sábados faço a terapia da terra: planto flores, faço jardins, hortas. Semeando, sentimos a vida desabrochar. No restante do tempo livre, tenho me empenhado em escrever algo sobre a realidade e a conjuntura indígenas. Faço isso como um trabalho-lazer, lazer-trabalho. De resto, gosto de estar com os amigos. O espírito da festa é celebrado pelos indígenas: a vida tem sentido se ela for uma festa. Nós, infelizmente, sacrificamos a vida em função do trabalho, do nosso interesse de produzir cada vez mais. Perdemos um pouco esse espírito da festa. Estou tentando recuperar esse tempo, viver da terra, sentir a vida.

Visita familiar
Somos nove irmãos que vivem espalhados pelo Brasil. Conseguimos nos reunir uma vez por ano. Hoje, com as formas de comunicação digitais, nos comunicamos com frequência. Claro, nada seria igual a uma visita. Tenho aprendido com os índios, além da paciência histórica e da persistência heróica, que a alegria de viver e a espiritualidade fundamentam a vida. Às vezes, nos esvaziamos e ritualizamos coisas que satisfazem e nos deixam acomodados. Perdemos e não temos conseguido recuperar esse espírito da integralidade da vida. Mesmo como missionários, ficamos esvaziados no afã de dar respostas às demandas propostas. Isso nos tira a capacidade de colocar a vida em primeiro plano.

IHU On-Line – A partir da sua experiência, que mudanças são necessárias na Igreja, no sacerdócio? 
Egon Heck – Fui padre durante 12 anos. Deixei a vivência do sacerdócio para constituir família; sou missionário leigo por opção. Deixei de ser padre e não deixei de fazer tudo que fazia antes, a não ser as questões sacramentais. 

Sou casado há vinte anos e tenho três filhos. Do ponto de vista humano, senti que a realização se tornou mais integral e possibilitou a harmonização do aspecto afetivo da vida. O celibato tira as possibilidades de uma realização mais tranquila de pessoas que, às vezes, não têm vocação para o celibato, mas gostariam de desenvolver uma atividade no ministério da Igreja. Com o casamento, tenho conseguido uma tranquilidade interior e afetiva maior. Os índios, por exemplo, não compreendem o fato de algumas pessoas optarem por ficarem sozinhas. A sexualidade e a afetividade estão imbricadas ao ser humano e não são um departamento que podemos decidir se nos interessa ou não.
 

A crise mais profunda dos sacerdotes da Igreja se dá, em grande parte, dentro dessa reflexão mais profunda de partir para outros caminhos e não numa via única. Estamos bastante próximos de mudanças nessa área, mas, como todas as tendências estruturais são conservadoras, para mudar, leva séculos.


IHU On-Line – Como define sua fé? Ela foi transformada a partir da convivência com os índios?
Egon Heck – Eu tinha uma fé muito ancorada em alguns aspectos rituais, sacramentais, a qual foi se reencontrando e se redimensionando para uma fé mais libertadora no sentido integral e não tão diretamente acoplada a determinados ritualismos e estruturas. Uma fé mais liberta é uma fé mais libertadora, que consegue ser fermento. Ter contato com outras realidades possibilita um amadurecimento da fé no sentido de libertá-la das amarras e colocá-la numa dimensão de busca e realização. Às vezes, ficamos restritos a espaços e formas. Uma fé que tem uma visão da centralidade da vida, mesmo ancorada na história da salvação, possibilita o diálogo com as outras formas de visão do sobrenatural, das espiritualidades que estão presentes nos povos indígenas. Eles também questionam a sua fé, aspectos de sua vivência; têm enorme dificuldade de entender a fé de um fazendeiro, que invade suas terras e mata pessoas. Eles têm dificuldade de entender a estrutura do cristianismo.

IHU On-Line – Quais são os seus sonhos?
Egon Heck – Sonhos sempre são perspectivas mais amplas. Ainda acredito naquele grito dado em Porto Alegre, há dez anos: “Outra sociedade é possível!” Participei de quatro Fóruns Sociais Mundiais. Sinto-me dentro dessa perspectiva de mudanças profundas da humanidade. Sinto que esse momento se avizinha com mais velocidade em função das posturas de um sistema que não tem freios e não consegue se autoavaliar. Temos de reconstruir outros pilares de humanidade, de vida, de planeta. Não só ouvimos falar, como estamos sentido na prática as consequências de um modelo que não tem nenhuma viabilidade em termos de sonhos. 
Outro sonho é reconstruir a dinâmica da terra. É um absurdo ver muitas terras ocupadas com soja e, ao mesmo tempo, enormes acampamentos de lonas pretas na beira das estradas.
 
Sonho sem ilusão, mas é sonho e tem de ser sempre sonho. Se não conseguirmos mais sonhar, entramos em parafuso, a vida perde seu encanto e as possibilidades vão se restringindo cada vez mais.


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